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Brasil / África

Ubuntu: educação colaborativa no quilombo digital
por Kauê Vieira

 

A Ubuntu é fruto do Desabafo Social, coletivo criado com a proposta de garantir a educação de jovens e crianças a partir dos direitos humanos. (Foto: Reprodução/Facebook)

Homens e mulheres negras sempre estiveram atuantes ao longo do curso da história brasileira. São muitos os exemplos, como Antonieta de Barros – primeira mulher negra eleita deputada estadual em Santa Catarina e pioneira na discussão e reivindicação da posição da mulher em meios conhecidamente machistas como o mundo político. De São Paulo vem o Teatro Experimental do Negro (TEN), concebido na década de 1940 por Abdias do Nascimento, o grupo usou a arte para evidenciar o preconceito existente nas artes cênicas (dominada por atores brancos), concebeu espetáculos para a discutir a realidade do negro do Brasil, formou milhares de novos atores e atrizes negras e criou a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional de Mulheres Negras.

 

 

Com início do novo milênio e fim do século XX, a internet e outras tecnologias de comunicação se toraram cada vez mais fortes e presentes na vida das pessoas, especialmente a partir da revolução causada pelas redes sociais. O que não faltam hoje são coletivos, inciativas independentes de homens e mulheres negras fazendo arte, música, cinema, pensando novas formas de educação etc. Por exemplo, em São Paulo – maior cidade do Brasil, um grupo de mulheres negras formou o coletivo Manifesto Crespo para falar sobre cabelo, desconstruindo preconceitos, exaltando a versatilidade e principalmente falando da origem de cada penteado e os motivos do uso de acessórios como o turbante. Ainda na capital paulista, o Coletivo NoBrasil realizou em 2015 um dos eventos mais interessantes do ano: o Afrotranscendence, uma verdadeira imersão artística para tratar dos passado do presente e os rumos futuros da criação negra no Brasil.

 

 

Parafraseando a queniana Jepchumba em participação na primeira edição do Festival Afreaka: encontros entre Brasil e África Contemporânea (outra iniciativa pensada para aproximar e promover a contemporaneidade de ambas as regiões) e uma das referências quando se trata de arte digital africana, não há desculpas para não ficar por dentro das novas plataformas criadas por uma gente negra que tem sede de conhecimento e está determinada em alterar o cenário atual de um povo que representa mais de 50% da população brasileira. Basta dar um Google. Aliás, no buscador mais famoso da internet é possível entrar em contato com a Ubuntu, rede social de aprendizagem colaborativa lançada pelo Desabafo Social, coletivo negro de Salvador, Bahia.

 

 

“A Ubuntu vem com a proposta de ter conteúdo com o foco na história e cultura afro-brasileira, já que a escola nega nossa história e a universidade destrói nossa história através das referências bibliográficas majoritariamente brancas,” explica em entrevista ao Afreaka Monique Evelle, soteropolitana e Diretora de Inspiração e Fundadora do Desabafo Social .

 

 

A Ubuntu é fruto do Desabafo Social, coletivo criado com a proposta de garantir a educação de jovens e crianças a partir dos direitos humanos. Com uma rede de 13 jovens colaboradores espalhados por todo o Brasil, o Desabafo Social ministra cursos, palestras e oficinas, além de ter uma Web Rádio e um núcleo de estudos interdisciplinares. Em um país onde um jovem negro tem mais três vezes mais chances de ser morto do que um branco, a discussão acerca dos direitos humanos, especialmente de meninos e meninas negras é fundamental. Para se ter uma ideia, de acordo com levantamento feito pela Anistia Internacional, em 2012 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil e destas 30 mil são jovens entre 15 e 29, sendo que 77% são negros. Nessa linha, Monique afirma que as pessoas sabem o que são direitos humanos, mas conclui que falta diálogo e uma melhor interpretação para que seja possível conscientizar a população sobre o assunto e consequentemente alterar os números apresentados acima.

 

 

“Todas pessoas sabem o que são direitos humanos. Se um diz “direitos humanos são para humanos direitos” e outro diz “direitos humanos são direitos de todos os humanos”, conseguimos enxergar em falas diferentes a repetição da palavra humanos. O primeiro sabe de forma equivocada, mas não descarta a possibilidade de ser para os humanos. Se eu enxergo um equivoco desse, é só começar o diálogo. Aos poucos vamos desconstruindo essa herança da ditadura militar de “humanos direitos” ou “direitos humanos para bandidos,” pontua.

 

 

Ubuntu é uma expressão da língua Zulu, que em português quer dizer “Eu sou porque nós somos” e seguida a risca pela rede social, que vê a união como pilar necessário para estabelecer uma rede de relacionamento baseada nos direitos humanos, criação coletiva e participação social e política. Em menos de dois meses de criação, o espaço já chama a atenção pelo alto número de participantes e para Monique os números expressivos são fundamentais no caminho de quebra do domínio dos veículos de comunicação por um conglomerado de famílias.

 

“Em nossa sociedade, onde um pequeno grupo de pessoas controlam as telecomunicações e detém o poderio econômico, é difícil concorrer. Mas acreditamos tanto na proposta da Ubuntu, que as pessoas começaram a acreditar também. E por elas acreditarem, não podemos desacreditar. Somos mais de 1.500 usuários, sendo a maioria mulheres e negras, que discutem mais sobre Gênero e Diversidade, Gordofobia, Educação e Relações Raciais, Feminismo Negro e Política de um modo geral.”

 

 

 

Monique Evelle: “Ser mulher negra é entender que não existe hierarquia de opressões, como bem nos explicou Audre Lorde.” (Foto: Reprodução Desabafo Social)

 

 

Para chegar ao produto final o processo foi longo. Durante a concepção da Ubuntu, Monique Evelle percorreu sozinhas as ladeiras de Salvador por um ano falando de direitos humanos para quem quisesse ouvir e foi nesse processo que ouviu conselhos para que transformasse o projeto em rede social.

“Uma menina parar com folhas de oficio, uma mesinha e a mochila e começar a conversar do nada, assusta qualquer pessoa.  Nunca fiquei por mais de 3 minutos falando sozinha não. As pessoas respondiam  porque eu puxava muito assunto sobre o que passava na televisão a conversa fluía. Então tinha um diálogo bacana. Aos poucos eu ia colaborando com aquilo que eu tinha conhecimento e a pessoa também, e analisávamos juntos os programas policialescos e as novelas”, ressalta.

 

 

A Ubuntu oferece aos seus usuários debates e iniciativas nas áreas de educação, relações raciais, direitos da infâncias e juventude, gênero e cria conteúdos por meio da wiki, fornece uma biblioteca online a partir dos links úteis, promove divisão de tarefas e por aí vai. A rede social é voltada especialmente para pessoas negras, mas de acordo com Monique todos e todas são bem-vindos.

“Todas pessoas podem entrar, mas é inegável que a escolha do nome Ubuntu, da cultura Zulu que em português significa “Eu sou porque nós somos”, atrai pessoas negras. Como queremos que a rede se torne instrumento para preencher as lacunas da lei 10.639/03 (que obriga o ensino de África nas escolas), consequentemente a Ubuntu se tornará um quilombo digital. Se um ou uma estudante acessa o Ubuntu, e esse mesmo estudante estuda numa escola que não implementa a lei 10.639/03, eles estarão ganhando com a Ubuntu e as pessoas da rede colaborando com o aprendizado,” avalia.

 

 

O ensino da cultura afro-brasileira nas escolas é o objetivo principal do Ubuntu. Mesmo criada em 2003, a lei 10.639 ainda não surtiu o efeito desejado e necessário. Isso acontece pela falta de referências – de autores, artistas e profissionais negros nos livros didáticos utilizados por professores. Percebendo esta lacuna muitos educadores buscam os chamados meios alternativos, como a Ubuntu, que em 2016 vai concentrar esforços na educação. “A Ubuntu já vem com a proposta de ter conteúdo com o foco na história e cultura afro-brasileira, já que a escola nega nossa história e a universidade destrói nossa história através das referências bibliográficas majoritariamente branca. Este ano irei me dedicar para sugerir temáticas que respeitem a lei 10.639/03 em todas disciplinas. É possível ser interdisciplinar.”

 

 

Seguindo o raciocínio, Monique apresenta inúmeras alternativas para o ensino de África e da cultura negra do Brasil.  “Por exemplo, o 6º ano do ensino fundamental II estudam em Matemática sobre número egípcios. Já podemos destacar que o Egito fica localizado no continente Africano e dar evidências que os egípcios são negros. No mínimo mudar a cor dele nos livros didáticos. Se trabalharmos operações numéricas e probabilidade pode ser com base no heróis e heroínas negras, comunidades quilombolas no Brasil, movimentos de resistências e por ai vai. Trouxe a matemática como exemplo para mostrar que a lei 10.639/03 pode ser efetiva em todas disciplinas, inclusive nas exatas. Mas para que a escola dissemine a história e cultura negra, é preciso ter educadores preparados para abordar esses assuntos. Precisa ter esse recorte nos cursos de licenciaturas.”

 

 

Mulher negra e empreendedora, Monique Evelle é mais uma das muitas que, como foi dito no início da reportagem, pensam caminhos alternativos para o futuro da educação e lutam por um ensino, mídia e sociedade que representem de fato a população do Brasil. Representatividade sim!

 

 

“Ser mulher negra é entender que não existe hierarquia de opressões, como bem nos explicou Audre Lorde (escritora feminista norte-americana). É saber que não escolherei entre o machismo e racismo, lutarei contra os dois. Na política de embranquecimento do Brasil,  acharam que iriamos acabar em 100 anos. Então somos a resistência no corpo da mulher negra. Seja na estética, seja na fala.”

 

 

Faça cadastro no Ubuntu, é grátis:

http://ubuntu.desabafosocial.com.br/user/auth/login

 

 

Conheça mais sobre o trabalho do Desabafo Social:

http://desabafosocial.com.br/

 

 

Reportagem sobre o Teatro Experimental do Negro (TEN): http://www.afreaka.com.br/notas/o-teatro-experimental-negro-de-abdias-nascimento/

 

 

Saiba mais sobre o Afrotranscendence:

http://nobrasil.co/tag/afrotranscendence/

 

 

Visite a página do Manifesto Crespo:

http://manifestocrespo.blogspot.com.br/

 

 

Conheça o legado e vida de Antonieta de Barros:

http://www.afreaka.com.br/notas/antonieta-de-barros-protagonista-de-uma-mudanca/