ocidentalização
Arte: Natan Aquino
Em conversa com o Afreaka, o documentarista e analista cultural Antonio Katakwe bota a boca no trombone. Direto e reto traz fortes críticas ao processo de ocidentalização em curso no continente. Ainda, quebrando mitos e desconstruindo verdades prontas, censura e recrimina o processo da ajuda humanitária estrangeira, expondo algumas de suas consequências. Na entrevista, Antonio também conta sobre o seu próximo projeto “Africa Queen”, que pretende, quebrando a estrutura vigente de mídia, trazer um novo olhar sobre a cultura local.
Como você analisa a cultura contemporânea na Zâmbia?
Culturalmente eu acho que estamos vivendo uma perda. Estamos perdendo nossas tradições e acredito que, em certo ponto, elas só vão ser revividas no mundo acadêmico. Quando o colonialismo veio, ele veio com uma bíblia em uma mão e uma arma na outra. Fatores pesados para erradicar uma cultura. Hoje, que nós reassumimos a independência, simplesmente assumimos os estragos do colonialismo e demos continuidade a ele, nesse caso como uma intimidação da cultura ocidental. E eu não vejo razões para ter abandonado algumas de nossas estruturas, algumas delas tão sofisticadas. Nós estamos perdendo as nossas bases culturais. O que eu estou falando é que coisas como músicas, danças, vestimentas não estão sendo apreciadas com seus devidos valores.
O que seria a intimidação da cultura ocidental?
Hoje por exemplo, enquanto estamos lutando contra a AIDS, as instituições e ONGs entram no meio de uma vila, desconsiderando como as pessoas estão organizadas e atravessam o esquema estrutural e o modo de viver desse povo. Eles chamam isso de solucionar o problema, mas o que acontece com a estrutura eles não se importam. Eu, por exemplo, venho de uma área que se você vai aprender sobre sexo, é o seu tio que vai ensinar e você vai ter uma idade certa, e existirá todo um modo tradicional de como fazê-lo. E daí vem certa instituição, apoiada por financiadores ocidentais, que vai até o meio de uma vila com um pedaço de madeira talhado no formato de um pênis e com uma camisinha, causando constrangimento para essa vila, sem levar minimamente em consideração os seus valores e sem respeitar suas culturas. Com inúmeros casos como esse desrespeitando culturas por todos os lugares, a ‘ajuda’ se torna um desastre cultural.
Outro problema da ajuda estrangeira é que o suporte é dado para as pessoas erradas. O que acontece atualmente é “Aqui é a África, eles não podem pensar por eles mesmos – Vamos dar isso a eles. É o que eles precisam”. E no meio tempo, enquanto as pessoas estão precisando de um poço, elas recebem uma ponte. Talvez não seja um bom exemplo, mas isso começa a ficar problemático quando essa imposição afeta até mesmo o que eles precisam aprender. Se um patrocinador externo vai dar dinheiro para um projeto de educação, normalmente eles trazem os sistemas de estudos do exterior. Eu acho que seria justo que as bases fossem retiradas baseadas no que as pessoas demandam aqui. Eu acho que a ajuda externa poderia ser mais sensível ao que estão introduzindo nas vilas africanas, porque metade das vezes, eles acabam atravessando estruturas muito importantes. Por exemplo, um projeto contra a malária distribuiu rede contra mosquitos na região do Lago Tanganyika. As pessoas, que estavam com déficit na alimentação, as utilizaram como rede de pesca. Só que por não ser feita para isso, a rede acabava pescando os ovos e os peixes pequenos. Resultado? O lago, que era uma das principais fontes de alimentação do norte do país, está quase sem peixe.
Mas a urbanização acaba trazendo fortes consequências para alguns costumes, que se tornam algumas vezes impraticáveis. Como você acha possível balancear a cultura tradicional e a contemporânea?
Eu tenho uma atitude em relação a isso. A primeira coisa a se perguntar é: eu tenho uma escolha? Eu quero viver a vida ocidental? O resto do mundo está vivendo assim, então eu tenho outra opção? O que eu estou falando é dos valores de base. Desde que os valores de base possam se manter, então é possível apreciar a inclusão da cultura ocidental. Eu acho que tem que acontecer naturalmente, mas no momento há muita intervenção. Com o HIV e pobreza, as pessoas acabam não tendo escolhas em termos de valores. Eu queria que as pessoas pudessem escolher seu estilo de vida. É muito injusto, porque as medidas são ocidentais. “Se na Europa é feito de um jeito, então por isso, o correto é fazer o mesmo aqui” – isso tem que ser quebrado. Acho que as pessoas deveriam apreciar os valores locais.
Você poderia dar alguns exemplos desses valores?
São inúmeros. Posso falar do meu grupo étnico. Por exemplo, o valor de que se você se casa com uma mulher, você se casa com toda a família, você não se casa com um indivíduo independente. Uma criança pertence a todos, a comida é trazida para um lugar comunal, cercas não existem entre as casas e pessoas. Até no design de uma vila e no arranjo físico das nossas casas existem muitos valores impregnados. As nossas cabanas são dispostas em forma concêntrica, porque, por exemplo, se um homem está doente, ele vai à casa do meio e divide seus problemas. Ali existirão outros conhecimentos para serem divididos. Quem sabe então, os conhecimentos do ocidente. Mas eu quero que as pessoas possam fazer escolhas. Essa é minha atitude.
O que poderia ser feito para preservar a cultura?
A primeira coisa a ser feita é documentar as tradições que ainda existem. As pessoas que tem acesso à mídia têm que informar que escolhas já foram feitas e quais ainda podem ser tomadas. É preciso explicar ao povo que existe muita potência na nossa cultura.
E você poderia introduzir o seu trabalho neste contexto?
O meu projeto “Africa Queen” pretende trazer o ponto de vista das mulheres das vilas tradicionais africanas. A ideia é que elas mesmas filmem e documentem sobre suas próprias culturas e sobre as mudanças em transição. E com as ferramentas modernas, eu acho que isso é possível. Eu acho que elas podem fazer vídeos dos exemplos de hábitos e tradições, como práticas medicinais, tradições de higiene etc., e dividi-los com a comunidade.
Acredito que a mídia tem que informar as pessoas sobre aquilo que faz parte da própria cultura – e acho que as mulheres das vilas podem fazer isso melhor. Isso vai ter um impacto midiático maior, porque na vila a mídia que vem da cidade é considerada suspeita, é considerada colonizadora. É preciso entender que as pessoas não se identificam e não se enxergam nela, não veem os seus problemas abordados. Isso acontece porque a mídia tradicional traz uma sensibilidade urbana. O perigo de mandar filmmakers para uma vila para reportar ou documentar algo, sem ter sistemas ou instrumentos para ler a sociedade e a sua estrutura, é que eles vão voltar com informações erradas ou interpretações erradas – que é o que está acontecendo hoje. Eu quero ajudar as mulheres a criar plataformas de discussão com os tópicos escolhidos por elas. Acho que é o melhor meio de comunicar o que está acontecendo de verdade nesses lugares, as lutas culturais que elas estão vivendo e como a ocidentalização está interferindo.
E por que a mulher?
As mulheres são as encarregadas aqui. Eu não entendo porque as ONGs que vêm para cá gastam tanto dinheiro falando de liberação da mulher. Se você for a uma estrutura africana verdadeira, o homem é apenas o homem ‘dela’, e é ele quem faz o trabalho pesado: constrói a casa, caça etc., e ela é quem é a dona da casa. Ela decide como as crianças vão ser criadas, o que vai ser plantado e qual vai ser o plano do dia. São elas as chefes, elas que têm o poder. A mulher pode até mesmo fazer com que você seja expulso da vila se falhar nas responsabilidades para com a família. Elas são fortemente deliberadas. Os homens não intimidam as mulheres, porque se eles o fizerem, estão intimidando toda uma família, que vai bombardear o cara. A minha casa é minha mulher quem comanda. Bom, eu não quero trabalhar com homens porque eles são inúteis (Risos) e aqui as mulheres são as que tomam as decisões e que comandam a família, por isso acho que são elas quem tem mais para contar.