Arte: Natan Aquino
Nafissatou Dia Diouf é um dos mais fortes nomes da literatura contemporânea no Senegal. Inovadora, a jovem autora vem quebrando as estruturas da literatura africana das últimas décadas e criando um novo estilo, de contexto urbano, marcado pelo humor e pelo feminismo. Antes de completar 40 anos arrecadou prêmios de peso como o Prix du jeune écrivain francofone, Prix Francomania au Canada e o Prix de la Fondation Senghor para romance e poesia, entre outros – muitos conquistados ainda em seus vinte e poucos anos. Nafissatou, em entrevista exclusiva ao Afreaka, fala sobre literatura contemporânea, feminismo e dualidade cultural, revelando o caminho de suas escolhas estéticas e temáticas.
Por que a literatura?
Na verdade não posso dizer que foi eu quem escolhi. Quando comecei a escrever, eu nem sabia que estava fazendo literatura. Foi algo que se impôs sozinho na minha vida, como uma vontade. Quando eu era pequena, eu lia muito e sonhava muito também, no meu micro mundo. Quando eu aprendi a ler e a escrever, para mim foi como se eu tivesse ganhado algo de mágico em minhas mãos. Eu gostava de contar histórias, de contar o mundo que eu via, que eu não compreendia e que me fazia sofrer, como as guerras e as injustiças. Escrever é como a sede de algo, mas algo que desenvolvemos depois.
O que é preciso para ser uma boa escritora?
É essencial ler. Ler desenvolve o vocabulário, a qualidade e a métrica da língua, mas acima de tudo ler desenvolve as ideias. Quando lemos, nós nos posicionamos em relação às ideias dos outros – concordamos, não concordamos – e isso alimenta a reflexão própria. Além disso, a leitura para mim abre a alma. Eu nasci no Senegal, vivo no Senegal, viajo de vez em quando, mas não posso conhecer o mundo todo. Por isso, ler para mim é viajar às vezes no espaço geográfico, mas também no tempo. Leio coisas de outro século, de outro universo, que me permitem abrir a alma e que me transformam em uma melhor escritora.
Quem são suas inspirações literárias?
Eu não diria alguém em especial. Gosto muito de ler e me apego a alguma coisa específica de cada autor, ou às vezes não me apego a nada. Na literatura africana, Amin Maalouf, Tahar Ben Jelloun, Aminata Sow Fall, Amadou Hampaté Ba – li bastante todos e talvez neles encontro um quê extra do que eu não conheci, porque são autores mais velhos do que eu. Eles são de um período pós-independência, que eu não vivi, mas que com eles eu consigo reviver. E é verdade que cada um tem seu estilo e por isso presto bastante atenção quando eu gosto de um autor para não copiá-lo. Não apenas porque deixaria de ser original, mas porque fazer isso acaba matando a criatividade. Se escrevêssemos todos iguais, não seria mais preciso autores. Bastaria ler um livro que você teria lido a todos. Por isso tento não ter um modelo, tento ver o que eu aprecio em cada obra, para poder retirar algo relacionado a mim mesma, ao meu próprio estilo, mas sem copiar.
No exterior, no mundo das artes os autores africanos mais conhecidos são desse período da pós-independência até os anos 80. Os autores jovens e contemporâneos como você começam agora a se destacar no cenário. O que você enxerga como diferença de estilo entre as duas gerações?
Nas técnicas, nós somos hoje muito menos ortodoxos. A geração anterior tinha aprendido um bom francês e eles trabalhavam com a instituição desse bom francês, com a língua muito pura e muito “velha França”. Nós tentamos quebrar esse código, tentamos reinventar a língua. No mundo francófono, cada país tem seu próprio francês e um não é nada parecido com o outro. Cada país adapta a língua à construção gramatical e lexical local, e ainda, muitas vezes, acrescenta novas palavras, que são intraduzíveis para o francês. Acho que nós da nova geração apropriamos o francês e formamos a nossa própria língua. Não falamos mais o francês da França, e sim o daqui, com nossas construções e com nossa língua materna.
Já na temática, nas décadas depois dos anos 60 é verdade que eles falavam mais de colonização, do processo de independência e pós-independência. Existiu também um fenômeno em quase toda a África nesse período que era a ditadura. E evidentemente esses momentos fecundaram a literatura de então, que acabou assumindo um importante papel na conquista da democracia, uma vez que era uma literatura de denúncia. Nós agora chegamos a um momento diferente. No Senegal temos uma tradição democrática já bem estabelecida. Claro que não é um governo perfeito, mas o que me interessa, por exemplo, é como vive a sociedade senegalesa contemporânea e urbana. Eu vivo em Dakar, vivo nos anos de 2010. Então me interessa falar do hoje, do agora e dos problemas sociais atuais. Nas minhas crônicas, a temática mais presente é o comportamento das pessoas e os códigos sociais que regem nossa sociedade.
Leitores e crítica consideram a sua literatura com um forte traço feminista, como você pensa que isso se mostra nos seus livros?
É verdade. Recentemente em um café literário, um jovem chegou para mim e falou: “às vezes parece que você não ama muito os homens. Nos seus livros são sempre personagens ruins, são sempre os maldosos da história!” (Risos). Eu respondi que não era isso, que eu escrevo situações que existem. São circunstâncias reais. A desigualdade existe e é preciso reconhecê-la antes de tudo. E 70% dessa desigualdade é causada pelos homens. É verdade que na minha literatura eles assumem um papel negativo, mas não são situações que inventei, são situações que existem. Não é uma estigmatização. Só sei que sou alguém contra as desigualdades e eu ainda encontro muita desigualdade em relação à mulher.
Na sua literatura, qual é o papel da mulher? Como você a representa?
Eu tento dizer e contar os quadros de como ela vive e tento contar suas batalhas e desafios, em qualquer nível que seja. Eu não falo apenas da mulher empresária, que lidera empresas e negócios. Não é este o critério. Para mim, uma mulher que batalha para sustentar sua família já é uma perfeita heroína para as minhas histórias. Uma mulher que tem um pequeno comércio na rua, com sua mesa de frutas e legumes, e que consegue levar suas crianças para escola, para mim é um modelo de mulher exemplar, uma mulher que não cruza os braços, que não fica a espera, que não confia tudo à responsabilidade do homem, do marido. É assim que quero apresentar a mulher. Não somente aquela que sofre, mas aquela que se vira, que é o personagem principal de sua história.
Nas suas crônicas existe uma forte crítica à poligamia, como você analisa o cruzamento entre contexto religioso e a situação da mulher no país?
Claro que acabo falando bastante da poligamia, mas minha crítica não é à poligamia em si, mas aos dramas familiares e pessoais causados por essa estrutura. Eu acredito que a religião é um pretexto na verdade. A poligamia é mais cultural do que religiosa. No Senegal existem cristãos casados com mais de uma mulher e em alguns países majoritariamente islâmicos a incidência de poligamia é super baixa. Eu acredito que é qualquer coisa muito mais ligada a cultura. Existe sim uma facilitação para homem, uma vez que o Alcorão não interdita, mas também não incentiva. E os homens acabam o usando como desculpa, mas a verdade é que não é preciso ter mais de uma mulher para ser um bom muçulmano. Para que aconteça alguma mudança, seria preciso investir na educação, principalmente dos jovens meninos.
Em sua opinião, em que ponto está a emancipação da mulher senegalesa?
A mulher senegalesa é cheia de vida e tem também seu poder de decisão. Antes este poder era presente mais no meio familiar e social e menos na vida pública. Hoje a situação está diferente. As mulheres preservaram o poder de decisão na vida pessoal, mas cada vez mais estão conquistando a vida pública, construindo carreiras e se tornando líderes, assumindo grandes cargos no meio privado ou político. A mulher no Senegal está em um território de afirmação.
O que te inspira?
Isso depende. Existem dois tipos de temas, a nostalgia e a natureza e esse tipo de coisa, ou aquelas coisas que te incomodam no interior, aquilo que te deixa engasgado. E escrever então é um jeito de botar isso para fora, uma maneira de chegar a um equilíbrio. Quando algo me toca, escrever é a maneira de me exprimir. Não sou uma mulher da vida política ou mulher de discursos, eu sou uma mulher que escreve. Essa é a minha solução pessoal, é como eu consigo botar algo ruim para fora. O que me inspira também para as escritas de ficção são os hábitos e comportamentos contemporâneos, sejam eles agradáveis ou difíceis. Eu não estou do lado de fora, eu vivo a sociedade e quero também que ela cresça, que progrida, que mude. É daí que surgem minhas críticas. Escrevo para incitar que as pessoas se olhem no espelho, analisem seus próprios comportamentos e o que elas poderiam mudar. Não dá para dizer que o mau comportamento me inspira, mas com certeza é onde eu busco material.
Quais são as suas escolhas estéticas para a narração desses temas?
Na verdade não são coisas que eu calculo, são mais os críticos que leem e definem o jeito que eu escrevo. Eu tinha uma escrita muito clássica, muito apoiada na língua da velha França, muito acadêmica. Agora, tento sempre desconstruir essa língua, construindo frases discutíveis, que estranha o estilo anterior.
Mas não posso dizer muito sobre isso, eu não me olho escrevendo, a escrita é algo que sai de mim. Escrevo de modo completamente diferente do que escrevia há dez anos. Espero que assim continue. Hoje, na minha escrita, sou mais leve, mais à vontade. No humor, tento fazer apenas o que é necessário. Não gosto do humor que se pendura no outro, que depende do outro para existir, que depende de machucar um terceiro. Acho que o humor e seus jogos têm que fazer sorrir, não ofender.
No Senegal, qual é a relação entre a língua francesa e a língua franca, o wolof, e as diferenças culturais que elas carregam? Até onde isso te influencia?
Existe um fator de diferenciação que é o nível de escolaridade. Infelizmente, quem não tem a oportunidade de estudar, não aprende a língua francesa, que é uma língua universal. Mas saber o francês não nos impede de falar a nossa língua. Dentro de casa falamos francês e wolof. Mas por exemplo, a minha língua mãe original eu já não falo. E isso é uma pena, isso é um empobrecimento cultural. No entanto, de modo geral, acho que sou bem aberta para essa questão, vivi fora, viajei bastante.
Então tenho todas as influências. Acho que me apresento bastante dentro da minha cultura. Sou senegalesa, escolhi viver no Senegal. Mas não vivo como uma senegalesa tradicional, porque tive uma educação que me fez confrontar outras culturas. A minha base cultural é daqui, mas acho que vivo também como uma cidadã do mundo, sem fronteiras. Somos todos de uma única raça, que é a raça humana. E para mim é enriquecedor pegar os elementos culturais estrangeiros que me convêm, e o mesmo vale para a minha leitura. Sou influenciada pelo universalismo.
Site da autora: http://www.nafidiadiouf.net/