Arte: Natan Aquino
Para andar do primeiro vagão ao último vão se lá uns 20 minutos, que podem até se transformar em 10 se o trem estiver vazio, mas claro sem a metade da graça. O desafio (e a diversão) é abrir espaço pelos corredores estreitos, desviar das centenas de pessoas pelo caminho, descobrir como cumprimentar em pelo menos quatro línguas e, ao mesmo tempo, se equilibrar na dança intensa dos vagões, enquanto o chão tremelica aos seus pés.
São três dias se tudo der certo, 1860 quilômetros, muitas, mas muitas paradas e um trilho, conhecido como trilho da liberdade, que liga Kapiri Mposhi, uma cidadezinha quase perdida no meio do mapa da Zâmbia, próxima a capital Lusaka, e Dar es Salam, centro econômico e principal porto da Tanzânia. A linha, que foi construída em 1970 e continua ativa carregando anualmente de lá para cá e de cá para lá cinco milhões de toneladas de carga e milhares de passageiros, é, hoje, um símbolo histórico de resistência.
Não é complicado entender o porquê. Nos anos 60, a evasão dos produtos dos países do sul do continente era feita pelos portos da África do Sul, que sob o regime do apartheid, resolveu fechar as fronteiras no momento em que as lutas de independência começaram a pipocar pela região. Os líderes da Tanzânia, um dos primeiros países vitoriosos contra a colonização e com vasto acesso ao mar, acreditavam que o país só seria verdadeiramente independente quando todos ao seu redor também o fossem. Nasce assim o trilho da liberdade, que além de estabelecer uma conexão ao porto para os países encurralados, também os abasteciam com armas e soldados. A parceria funcionou, especialmente para a Zâmbia, que logo em seguida, também abocanhou a liberdade.
Quarenta anos depois, os trens ainda são os mesmos, não faltando muito para tornarem-se patrimônios mundiais. Para os que precisam se locomover, é um meio de transporte seguro e para as cidades no caminho, um impulso econômico. Apesar de o trem possuir dois restaurantes de menu simples, é pelas janelas dos vagões que chega a principal fonte de alimentação dos passageiros: milho, chapati (espécie de pão), bolacha, manga, banana, frango, coco, peixe seco e mais uma infinidade de escolhas. As únicas opções geladas de bebida também veem do lado de fora. Vilas inteiras contam com a passagem do trem, que de ponta a ponta, é recebido com sorrisos, acenos e crianças tentando alcançá-lo por onde quer que passe.
O tempo de viagem pode variar entre 60 e 70 horas dependendo da sorte do passageiro e para viajar são três tipos de classe. A econômica vale um assento relativamente confortável, mas é na maioria das vezes utilizada pelos passageiros de meio trecho, ou seja, aqueles que descem e sobem antes ou depois dos extremos da rota. Os que escolhem o percurso mais extenso normalmente optam pela segunda ou primeira classe. Ambas com direito a assentos que se transformam em camas. A diferença entre as duas limita-se a quantidade de pessoas dentro da cabine. Quatro para a primeira e seis para segunda. E a menos que uma família ou um grupo de amigos compre a cabine inteira, homens e mulheres viajam separados.
Para os turistas não há opção melhor, dividir a cabine é uma oportunidade única de conhecer uma família local, fazer amigos e apreciar a cultura zambiana ou tanzaniana mais de perto. Quem sabe ter a sorte de ser convidado para um almoço no destino final. Paisagem bonita também não falta, e o quadro da janela varia da savana às montanhas. De sobra, o trem passa dentro de um Parque Nacional, que exibe para os passageiros suas girafas, zebras e antílopes em meio a um cenário de tirar o fôlego. Três dias, duas noites, 1860 quilômetros e vai faltar tempo para ler um livro.