“O TEN é fantástico. A experiência do TEN é uma das melhores coisas em termos de artes que a gente tem. Um grupo que era uma escola, que formou gente”, Vera Lopes – atriz.

“Eu acho que as artes de forma geral têm o poder de potencializar nossas vozes,” fala de Vera Lopes, mulher, negra e gaúcha, que há mais de 30 anos usa os palcos como espaço de militância pelo corpo ou pela fala. Nascida em Porto Alegre, Vera dedica sua vida a falar e apresentar os aspectos da cultura negra, responsável pela formação do Brasil. São diversos os trabalhos e espetáculos ao longo destas três décadas, como Brasil, um Eterno Quilombo, de Julio Ferreira. No palco, o corpo negro de Vera Lopes se apresenta e se representa na plenitude, abarcando tudo o que significa ser uma mulher preta em cena.

“Eu sou do Sul. Do Sul do Brasil. Rio Grande do Sul, Porto Alegre mais exatamente. Lá nós pessoas negras somos minoria absoluta, então o simples fato de estar no palco, deste corpo negro estar no palco tem uma importância e um significado imenso, porque a um olhar comum, as pessoas estão acostumadas a mesmice da brancura, da branquitude, da branquidão. Então tem aquele montarel de gente branca em todos os espaços e se colocar como uma pessoa negra, homem ou mulher, num palco de teatro, sim causa impacto, é importante e faz toda a diferença,” explica durante conversa informal com o Afreaka em sua casa no centro de Salvador, cidade que adotou há cerca de quatro anos.

Seja em leituras dramáticas ou em encenações em espaços como o Teatro Vila Velha, no centro da cidade ou o Centro Cultural Alagados, na periferia soteropolitana, Vera busca sempre permear sua fala com negros contornos. “Por via da arte a gente consegue atingir um número maior de pessoas. Eu acredito mesmo que é possível a gente trazer as questões raciais para a discussão por via da arte, seja com o teatro, com a poesia, com a música, com as artes plásticas, a gente pode e deve muito utilizar essa via.”

A paixão pelos palcos vem desde muito cedo, ainda no tempo em que as radionovelas reinavam absolutas no Brasil e a pequena Vera não descolava os ouvidos do rádio. Contudo a gaúcha, que também é funcionária pública, não sabe dizer com precisão como iniciou a relação com o ato de atuar.

“Sobre ser atriz, eu nem sei se fui eu ou ela que me escolheu, porque desde muito pequena eu já gostava de atuar. Quando era criança na minha casa a gente escutava rádio e ainda tinha novela de rádio, que hoje as pessoas nem sabem o que é. Nós e as pessoas mais pobres não tínhamos televisão, então restava apenas o acesso ao rádio e suas novelas. Eu adorava escutar as novelas. Eu escutava as novelas e depois ia pra frente do espelho e ficava repetindo os textos que tinha escutado nas radionovelas. Eu gosto, eu faço aquilo que eu gosto. Me dá muito prazer representar, me dá muito prazer pegar um texto e conseguir levar pro palco, pro cinema, seja lá qual das maneiras de apresentar esse texto, eu sempre senti muito prazer. Uma coisa complicada de explicar. Sempre que chega um trabalho novo vem uma profunda angústia do tipo ‘será que vou dar conta?’ Mas depois que tu tá no palco, em cena, é muito bom,” relembra.

Mesmo com nomes como Vera Lopes, o Brasil segue sem reconhecer a contribuição do negro para a dramaturga, exemplo disso é o desprezo para a biografia de atrizes como Léa Garcia e Ruth de Souza e até mesmo Zezé Motta. A cultura de exportar e dar preferência para atrizes brancas ainda é a máxima por aqui. Mesmo com mais da metade de sua população formada por pretos e pretas, ainda é exceção o protagonismo de atrizes como Thaís Araújo nas novelas. Além disso, para Vera Lopes o fato de o Teatro Experimental do Negro – com reconhecida contribuição social e cultural para as artes e a afirmação da identidade negra passar ao largo da história se deve ao racismo que rege os rumos da vida no Brasil.

“Primeiro eu acho que a gente tem que entender que vivemos num país racista. Quando entendemos que o racismo está na base da nossa construção de sociedade, compreendemos porque pessoas negras, mesmo que potencialmente sejam fantásticas nas áreas que escolheram atuar, seja nas artes, nos esportes, vão ter que enfrentar a exclusão do racismo. Elas vão ser muito boas, muito reconhecidas dentro de um determinado grupo, mas a sociedade brasileira racista não vai admitir que um grande número de pessoas negras esteja num espaço de poder. Escapa um ou dois, mas não um grupo inteiro.

O TEN é fantástico. A experiência do TEN é uma das melhores coisas em termos de artes que a gente tem. Um grupo que era uma escola, que formou gente. Que formou não só para atuar, mas formou pra vida, ajudou a alfabetizar um grande número de pessoas na década de 40, 50, até 60. Um grupo que teve um período de existência e que encenou diversos trabalho e deu pro mundo artistas da categoria de uma Léa Garcia, de uma Ruth de Souza. Um país sério e não racista se orgulharia imensamente dessas pessoas. A gente só não pira e enlouquece, pois reconhecemos que a estrutura da nossa sociedade é racista e que o racismo limita nossas vidas em qualquer área”, pontua.

Mulher negra e gaúcha em Salvador

“Voltamos para a mesma conversa de antes, nosso país é um país racista, então o mesmo racismo que a gente enfrenta no Sul, a gente vai ter aqui no Nordeste. Racismo é racismo, horrível em qualquer lugar e ele existe no Brasil inteiro de uma forma extremamente agressiva”, é assim que Vera Lopes inicia a conversa ao ser perguntada sobre as diferenças da vida em Salvador e em Porto Alegre.

Formada por uma população de quase 80% de negros, a capital baiana é uma imensa contradição na qual o racismo não pede licença. Ao mesmo tempo em que são maioria, mulheres e homens negros têm bem determinado seus lugares na metrópole. Um exemplo de tal discrepância é o Corredor da Vitória, que dá acesso à Barra e à orla da cidade. Lá os negros simplesmente desaparecem e um desavisado pode achar que não está mais em Salvador. Sequer os porteiros e prestadores de serviço têm a pele escura. Ao passo que em localizações como a Liberdade, um dos bairros mais carentes e populosos da cidade, pretas e pretos são maioria absoluta. Sintomático, não?

“Tem uma coisa que pra mim é bem significativa, ser gaúcha aqui em Salvador, as pessoas me olham, ouvem o sotaque e perguntam ‘da onde tu é?’ Eu respondo, sou gaúcha. Elas dizem ‘que? Gaúcha, tu?’ Então essa é força do racismo. Para o imaginário das pessoas só tem loiro de olho azul e eu como uma mulher negra não poderia ser gaúcha. Eu não faço parte do imaginário. Além disso, a gente pode até ter um número maior de pessoas negras em Salvador, de certa forma tu se sente mais protegido, de alguma forma tu te enxerga. Tu sai na rua, tu te enxerga, vê outras pessoas. Isso não acontece lá em Porto Alegre. A gente entra num ônibus e tu conta quantas pessoas negras tem. Tu entra num banco e tem, desde quem vai abrir, a segurança, o atendente, o gerente, são pessoas brancas, o contrário daqui. Mas não quer dizer que seja mais fácil lidar com o racismo porque não é. É difícil em todos os lugares,” analisa.

Como muitas coisas Salvador, o Pelourinho, famoso ponto turístico da capital da Bahia, também causa sensações misturadas, especialmente em negras e negros que têm consciência do que representa ter a pele escura no Brasil. Sobre o tema, Vera Lopes explica que o espaço que hoje abriga viciados em crack e simboliza um descaso do Estado com seu povo, foi um dos primeiros encantos de sua história com Salvador.

“A primeira vez que eu vim pra cá foi no início dos anos 1980 e o pessoal do Movimento Negro se encontrava lá no Pelourinho, na Cantina da Lua, então tinha um significado muito grande. Eu cheguei em Salvador encontrando esse Pelourinho borbulhando de vida, muita gente e também pessoas negras tentando fazer algum trabalho lá. Tem o lado da beleza arquitetônica e tem o lado da crueza. O lado de tu saber que tem muito sangue nosso ali. Muito. Não tem como tu não parar e não pensar que cada pedra que tá colocada ali foi a gente que colocou, foram os nossos. Que muitos dos suplícios da nossa gente foram nesse lugar. E também não tem como a gente não ver a miséria que algumas pessoas são empurradas.

Hoje uma das coisas dolorosas é tu ver como é jogado o crack em cima de algumas pessoas que vivem lá. Isso não é de graça, não é escolha daquelas pessoas. São coisas que devemos pensar. Então ele tem todos estes lados, nada é um lado só e o Pelourinho pra mim traz tudo isso, alegria em alguns momentos e muita angústia em outros.”