Malunga Thereza Santos (Foto: Geledés)
Maria Aparecida aprendeu a dançar lundu desde cedo, mãe dedicada de quatro filhos, adora Lupicínio Rodrigues; Thereza, aos 8 anos foi morar com a avó, saiu de lá casada, ainda na adolescência, quando esperava por Jorge; Ildslaine Mônica, em meio a toca discos e vinis, sempre que dava, mantinha-se antenada nas paradas de sucesso do blues, jazz, do melhor da música preta norte-americana.
Cotidiano comum das quebradas da cidade e da vida de mulheres negras. A novidade fica por conta de quem estamos falando: Tia Cida dos Terreiros, cantora e matriarca do samba de São Mateus; de Malunga Thereza Santos, atriz, filósofa e teatróloga, ativista na luta por direitos humanos e Sharylaine Sil, rapper, nascida na Zona Leste, a primeira mulher a fazer registro fonográfico em seu estilo em 1986. Pioneiras em suas linguagens artísticas, Tia Cida dos Terreiros, Malunga Thereza Santos e Sharylaine são referências na luta contra o machismo e o racismo. Agora, a trajetória e obra dessas mulheres são destaque na programação da quinta edição do Estéticas das Periferias.
O encontro que acontece entre os dias 25 e 30 de agosto, ao longo dos anos evidencia, de maneira massiva, a produção cultural de matrizes africanas. A presença majoritária de mulheres na curadoria coletiva do evento contribui com esse processo, fazendo com que as inovações e experimentalismos dessas artistas conquistem sempre ampla difusão.
Para o coordenador de programação do encontro, Adriano José, a presença das mulheres negras é consequência da ampliação de seu empoderamento nos últimos tempos. “O último dia 25 de julho, em que é celebrado o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, foi um exemplo de que a conjuntura está mudando.” Para o produtor, o crescimento significativo de atrações relacionadas às pautas das mulheres negras na cidade interferiu diretamente na articulação e, consequentemente, concepção da programação do Estéticas das Periferias.
Malunga Thereza Santos
Durante o Esquenta Estéticas, evento que pretende dar uma prévia do Encontro, a homenagem a Malunga Thereza Santos abre o mês no dia 22 de agosto. A produtora de eventos e responsável pelo espetáculo, Gal Souza, chama atenção para a necessidade do reconhecimento das figuras negras ilustres da história brasileira. Para Gal, a peça sobre sua obra “não é realizada somente por Thereza, mas, sobretudo pelo que ela viveu e não deve se perder”.
Gal conta que sua relação com Maria Thereza é afetiva. As duas se conheceram após um encontro rápido em São Paulo no ano de 2008, quando participavam de uma oficina de vídeo durante uma formação de jovens em Osasco – Thereza foi umas das entrevistadas convidadas. Suas histórias voltaram a se cruzar um ano depois no Rio de Janeiro, momento em que Thereza já estava muito doente e vivendo com seu filho.
“Ela morava em um bairro muito próximo ao meu, na época estava no Grajaú e o filho de Thereza vivia em Engenho Novo. A procurei para ver como poderia ajudar, pouco tempo depois por divergências políticas com seu filho, militante do Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Thereza era uma comunista convicta – decide viver no asilo”, recorda.
Gal relembra que, nos últimos quatro anos da vida de Thereza, a visitava todos os finais de semana e sendo assim, acessou um “universo único”, uma trajetória que começa no subúrbio carioca, passando pelo nascimento de seu filho, envolvimento com o partido comunista e até luta armada. Com carinho, a produtora revive: “obtive acesso efetivamente a trajetória de uma guerreira negra brasileira”.
Nascida no Rio de Janeiro no final da década de 1930, Thereza Santos escreveu importante página na luta pelo empoderamento da população negra. Militante comunista na década de 1970 – juntamente com o sociólogo Eduardo de Oliveira – escreveu e encenou a peça “E agora falamos nós”, uma das primeiras obras teatrais voltada para um público formado exclusivamente por negros e negras. Atuou no Teatro Experimental do Negro e também foi educadora em países africanos, como Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau, envolvendo-se nos processos revolucionários dessas nações no período. Ainda trabalhou como assessora de Cultura Afro-Brasileira da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo de 1986 a 2002.
“Malungo para os antigos africanos significava companheiro, escolhido propositalmente para ser nome de sua autobiografia, para Thereza devia ser usado no feminino, adotando o mesmo sentido e forma que gostava de ser chamada: companheira”, salienta Gal.
Tia Cida dos Terreiros
Tia Cida (Foto: Facebook)
No mesmo período em que Thereza desafiava o sistema político em solo africano, na Zona Leste paulistana, o Jardim da Conquista via em Maria Aparecida uma nova liderança. Mais conhecida como Tia Cida dos Terreiros, aquela assistente social – que já tinha também trabalhado como empregada doméstica – conduzia processos definitivos para sua comunidade em São Mateus no final da década de 1970 e início de 1980.
“Da luz a água, foi uma caminhada curiosa, muitas reuniões e até manifestações. Uma vez enchemos o pátio da Light com 15 peruas para dar uma pressão no pessoal. Todo mundo queria era melhorar a favela” comenta em meio aos risos, Tia Cida.
A música é presença permanente na vida desta que é uma das homenageadas do Estéticas das Periferias de 2015. Do lundu que aprendeu a dançar com a sua avó, até as rodas de samba que frequentava com sua mãe e depois com seus filhos, que se orgulha em dizer “foram todos criados na batucada”, Tia Cida possui uma trajetória em que a arte e o samba eram cotidianos.
“Eu fui surpreendida pelo tempo. Às vezes paro e fico pensando: nossa, quanta coisa eu consegui. Tinha que trabalhar, criar meus filhos, melhorar o lugar em que eles viviam. A vida foi uma consequência de fatos que faziam sentido em si mesmos. Você me entende? Vivia para poder viver e cantar faz parte disso” – de forma simples, conta Tia Cida. Para ela, a homenagem é o reconhecimento da sua batalha, como bem ressalta, e dá o tom de que tudo valeu a pena.
“Nesses 74 anos de vida, vi muita gente nascendo ali no meu quintal, muito partideiro de primeira. Em 2013, lanço meu primeiro CD depois de uma vida inteira na música com esses que ensinei e aprendi, sempre com muito respeito. Sabe, minha avó sempre dizia que a gente só é feliz no outro, tudo o que acontece para os seus, fortalece, alegra e enaltece o grupo. Agora tudo isso faz ainda mais sentido”, conclui.
Sharylaine Sil
Sharylaine Sil (Foto: crewactive)
O hip hop da Zona Leste, ali na região do Aricanduva, conta há três décadas com as rimas originais de Sharylaine Sil, pioneira do rap na cidade de São Paulo. Da fundação do primeiro grupo de rap feminino no Brasil, o Rap Girls, até a criação e consolidação do Fórum Nacional de Mulheres do Hip Hop – processo do qual fez e faz parte, Sharylaine vem construindo e consolidando a atuação da mulher nesse gênero musical predominantemente masculino.
Ao tratar dos principais desafios das mulheres negras nas artes periféricas, Sharylaine é categórica, como em suas letras de música. A cantora destaca a invisibilidade como a principal barreira no processo de difusão das produções dessas artistas periféricas. E sobre a dificuldade de inserção no mercado cultural, sobretudo na cena hip hop, enfrentada pelas mulheres negras , Sharylaine entende, afinal, suas composições abordam as temáticas do racismo, feminismo e valorização da identidade daquelas que vivem nas bordas da capital. Em seu novo álbum, cujas músicas apresenta no Estéticas das Periferias no dia 26 de agosto, sua sonoridade e diversidade rítmica dão conta da sua incessante busca pela originalidade e conteúdo político.
“Estamos nos fortalecendo, ampliando a nossa presença, mas precisamos avançar. Avançar na profissionalização da nossa produção e difusão. Precisamos chegar ao público cada vez mais e isso exige a superação diária do machismo e racismo. A mídia já tem seu padrão, nos resta romper mais uma vez e levar a nossa realidade para além dos nossos círculos”, finaliza.
Essas e outras representantes da arte produzida na periferia compõem a programação do Encontro Estéticas das Periferias, evento que já se consagrou como uma oportunidade de conhecer a cena cultural das quebradas da cidade, por meio de um grande intercâmbio cultural periférico.
Mulheres negras, como Thereza Santos, Tia Cida dos Terreiros e Sharylaine, despontam acompanhadas de figuras como MC Negaly, jovem cantora que retrata sua realidade através do funk, as rappers da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, que nesta edição convidam Tássia Reis para duas apresentações históricas, a Cia Os Crespos, que com a obra “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar”, debate questões como o impacto da escravidão na forma de amar. Além das mulheres do bloco afro Ilú Obá de Min, que promovem um circuito cultural pelos principais espaços da memória negra do centro da cidade de São Paulo.
Confira estas e outras atrações, como shows musicais, peças de teatro e palestras, no site do evento. Toda a programação é gratuita e ocorre durante a última semana do mês de agosto.