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Quênia

Quênia: como um aplicativo mudou a vida econômica de milhões
por Mário Bentes

Foto: Divulgação.

 

 

Em suahili, língua da maioria dos quenianos, dinheiro é traduzido como pesa. Poderia ser apenas mais uma palavra do idioma, mas a expressão tornou-se símbolo de uma mudança conjuntural que vem afetando, para melhor, a vida de milhões de cidadãos do país há quase uma década. Como acontece em muitos países – inclusive fora da África – as migrações das áreas rurais em direção às grandes cidades também são um fator comum no Quênia. E os trabalhadores que passaram a habitar Nairóbi, capital e cidade mais populosa do país, sentiram a necessidade de encontrar meios de repassar dinheiro às famílias que permaneciam nas zonas rurais.

 

 

E que meios seriam esses, se, até 2005, 81% da população do país não tinha contas em bancos? De um problema de difícil resolução, veio a solução inovadora: em 2007, a maior empresa de telecomunicações do Quênia, a Safaricon, lançou uma ferramenta que ampliava o já tradicional sistema de transferência de créditos de celular. Sim, a maioria não tinha conta bancária, por uma série de razões, mas 27% da população possuíam telefones celulares ativos e outros 27% tinham acesso a esses aparelhos. E esses números cresciam a cada dia.

 

 

 

Foto: Divulgação.
 

Se antes o serviço de transferência de créditos já funcionava como um modelo informal de método de pagamentos, a nova plataforma da Safaricon surgia como um meio até mais seguro (e barato) que os próprios bancos – e incomparavelmente melhor que a forma tradicional usada pela imensa maioria sem acesso às instituições bancárias: mandar um envelope cheio de dinheiro pelas mãos de motoristas de ônibus que faziam as viagens pelo interior do país.

 

 

A solução, batizada de M-Pesa (M, de mobile, e Pesa, de dinheiro), acabou ganhando ainda mais a adesão da população a partir do ano seguinte, quando eclodiram no país uma série de conflitos após as eleições daquele ano. Mesmo que a economia não tenha sido diretamente afetada pelas crises políticas, houve um clima de instabilidade por conta de protestos e violência. Ilhados em Nairóbi, os que ainda não haviam aderido o serviço o viam para além da comodidade, mas como uma necessidade: eles poderiam continuar a mandar dinheiro aos parentes, mas com uma dose extra de segurança.

 

 

Foto: Divulgação.
 

O sistema – agora integrado à multinacional europeia Vodafone – sagrou-se como a plataforma de transferência monetária mais importante do país. A facilidade e as circunstâncias o tornaram sucesso imediato, com 9 milhões de usuários no primeiro ano. Atualmente, sete anos após o lançamento da ferramenta, são quase 20 milhões de usuários ativos – mais de dois terços da população adulta do país. Pela tela do celular, são movimentado quase 25% do PIB da nação africana, o que torna o sistema o mais bem sucedido no planeta em sua categoria.

 

 

Impacto social

De nada adiantaria o país ter uma das economias mais fortes do continente africano se o cotidiano da população não fosse diretamente afetado pelas benesses do sistema econômico vigente e dos avanços das tecnologias. Assim, o trabalhador que esteja em qualquer região de Nairóbi e que precise enviar algum dinheiro para a família, só tem que comprar créditos para o seu celular da operadora Safaricom. E seguida, ele acessa o aplicativo do M-Pesa instalado no chip do celular e transfere os créditos recém-comprados para a mãe ou a esposa, por exemplo. O destinatário da transferência de créditos vai até uma das lojas da operadora e faz uma espécie de saque.

 

 

Foto: Divulgação.
 

São pelo menos 40 mil pontos de atendimento credenciados da Safaricom onde os beneficiários das transferências podem trocar créditos pelos xelins quenianos. A despeito da comodidade da aparente sofisticação do sistema, muitas vezes o estabelecimento de “câmbio” nada mais é que a loja da próxima esquina, que não foge muito do padrão de simplicidade da localidade rural onde está situada. No estabelecimento, após já ter creditado o valor da transferência para a sua conta própria conta do M-Pesa, o parente do trabalhador de Nairóbi pode finalmente sacar o esperado dinheiro.

 

 

O sistema está de tal forma inserido na realidade do povo do Quênia que a plataforma já estendeu as funcionalidades para outros tipos de movimentação financeira. Aquele mesmo trabalhador de Nairóbi ou mesmo um de seus parentes a quilômetros de distância podem fazer empréstimos a taxas mais baixas que a dos bancos, tudo pelo celular. Outras atividades comuns em muitos países, incluindo os mais bem desenvolvidos, como enfrentar filas, parece coisa do passado no Quênia. Isso porque, por meio do M-Pesa, também é possível pagar contas e receber o próprio salário. Poupanças também já são um dos destinos fáceis do sistema, com cada vez mais usuários comprando créditos de celular e repassando o valor para aumentar suas economias.

 

 

Foto: Divulgação.
 

A facilidade também se traduz em mais tempo livre para outras atividades que ajudem a aumentar a renda da população. Um estudo publicado pelo Banco Mundial, no ano passado, mostrou que na zona rural do país africano teve aumento médio de 5 a 30% na renda dos trabalhadores, além de semear o espírito do empreendedorismo no país: após a facilitação da movimentação financeira, já há uma proliferação de startups de todos os tipos – e muitas delas com modelos de negócios que giram em torno das funcionalidades do M-Pesa.

 

 

Acesso à economia

A dimensão das implicações do serviço de pagamentos e transferência móvel para a população de baixa renda do país foi explicada no mesmo estudo, que contou com apoio da Bill & Melinda Gates Foundation, organização filantrópica criada pelo “pai” da Microsoft e sua esposa. “Sem acesso ao financiamento, as pessoas pobres não podem investir em ferramentas para aumentar a produtividade, iniciar uma microempresa, investir em educação ou saúde, ou até mesmo ter tempo para procurar melhores oportunidades”, relatam trecho do estudo.

 

 

Foto: Divulgação.
 

Para os autores, o sistema M-Pesa “demonstra o valor de alavancar a tecnologia móvel para estender os serviços financeiros para grandes segmentos da população pobre sem conta bancária”, o que, além de minimizar a discriminação econômica, ainda potencializa o acesso a melhores oportunidades.

 

 

“Ao contrário de um banco tradicional, que normalmente faz a distinção entre os clientes rentáveis e não rentáveis com base no tamanho provável de seus saldos e capacidade de absorver crédito, o M-Pesa serve qualquer cliente móvel da Safaricom que paga uma conta”, diz uma das conclusões do estudo, que finaliza destacando que o sistema “revela a necessidade de [se criar] plataformas de transação de baixo custo que permita a clientes de baixa renda a atender a uma variedade de necessidades de pagamentos”.

 

 

O sucesso da ferramenta no Quênia não passaria despercebido nos países vizinhos, que começaram a importar a ideia de sucesso nascida naquele país – apenas uma entre as já muitas iniciativas tecnológicas existentes. Em pelo menos 16 nações do continente africano, já há sistemas semelhantes, usando a mesma proposta do M-Pesa: facilitar a vida da população, enquanto que, ao mesmo tempo, cria condições de desenvolvimento econômico, humano e tecnológico.