Embora tenha a pele clara, a vivência junto a essas mulheres abriu caminho para enfrentar o dilema da autoafirmação negra. (Foto: Divulgação)
A gradativa democratização do acesso à Internet vem ensejando a possibilidade de produção de conteúdos alternativos aos veiculados nos meios de comunicação tradicionais, frequentemente ligados a interesses corporativos. Desse modo, as redes tornam-se importantes para a articulação de segmentos da sociedade historicamente excluídos dos espaços de poder, elaborando novos sentidos de pertencimento. O tumblr Bicha Nagô, idealizado pelo arte-educador Ezio Rosa, é um exemplo da utilização das redes para promover empoderamento. Aliando a militância nas redes com atividades presenciais, ele vem desenvolvendo um trabalho de criação e discussão sobre a afrohomossexualidade.
Ezio conta, em um de seus textos, como passou por um processo de percepção de si mesmo enquanto negro a partir do contato com o Ilú Obá de Min, bloco nascido em 2005, conduzido por uma bateria exclusivamente composta por mulheres. Segundo ele, o grupo proporcionou aprendizado e empoderamento, pois teve a oportunidade de integrá-lo como dançarino a partir do ano de 2014. Embora tenha a pele clara, a vivência junto a essas mulheres abriu caminho para enfrentar o dilema da autoafirmação negra. Além disso, homens no meio da dança são alvos frequentes de homofobia, ainda que não sejam gays. A articulação dessas experiências, enquanto negro e gay, foi instigando Ezio a escrever sobre essas angústias.
Antes de criar a página Bicha Nagô, ele já publicava textos sobre homossexualidade no blog Crônicas do Armário, mas ainda não explorava o recorte racial e de classe. Durante o processo de afirmação de sua identidade negra, Ezio passou a procurar referências de textos, músicas e vídeos que pudessem contemplar sua experiência; porém, a representatividade de negros gays é muito reduzida. O autor do tumblr começou a associar percepções de racismo em suas relações com o acolhimento proporcionado no Ilú Obá de Min, o que impulsionou a criação da página e seu trabalho atual.
Expondo situações vivenciadas no cotidiano, o Bicha Nagô contribui para dar um senso de coletividade a experiências que, muitas vezes, parecem ser apenas angústias individuais. Além disso, problematiza a invisibilidade negra no meio LGBT, bem como preconceitos LGBTfóbicos recorrentes na própria comunidade negra. O autor traduz suas vivências em uma linguagem acessível, distanciando-se de pretensões acadêmicas e da escrita rebuscada, refletindo a realidade de ser gay na quebrada. Oferece, dessa forma, uma perspectiva alternativa à concepção predominante da homossexualidade, associada ao homem gay branco e de classe média.
Ezio conta, em um de seus textos, como passou por um processo de percepção de si mesmo enquanto negro a partir do contato com o Ilú Obá de Min. (Foto: Divulgação)
Em suas últimas publicações, o Bicha Nagô vem trazendo discussões sobre questões polêmicas, envolvendo afetividade, estética e representatividade negra. Ezio tem o cuidado de apontar que, sendo um homem gay cisgênero, suas reflexões têm um recorte específico, derivado de sua experiência. Ele tematiza a sensação constante de rejeição vivenciada por gays negros que, ao sair do armário, são sempre preteridos nos relacionamentos. As representações culturais predominantes associam o homem negro a uma potência sexual exacerbada, colocando-o na posição de objeto, destinado somente ao prazer sexual.
O impacto dessas representações se verifica na autoestima dos gays negros, uma vez que há sempre uma pressão para se afastar da imagem negra hegemônica e se adequar aos padrões de beleza do corpo branco e masculinizado. No meio gay, essa fixação estética se revela muito forte – e inalcançável para os pretos. Contudo, o Bicha Nagô vai além da crítica, propondo também a revalorização da beleza negra a partir de seus próprios referenciais. Em sua página no Facebook, foi lançado o álbum colaborativo “Lindo como um deus africano”, para promover a ampla representatividade da comunidade negra gay. Incentiva, assim, os pretos gays a “botar a cara no sol”, a sair da invisibilidade e a amarem seus corpos do jeito que são, ressignificando a própria ideia de beleza.
Além dessas publicações, o Bicha Nagô criou a seção “De bixa pra bixa”, em que abre espaço para textos de outros autores negros gays, expondo suas reflexões sobre suas vivências. Também vem realizando rodas de conversa sobre afrohomossexualidade, baseadas em um experimento cênico desenvolvido para problematizar a objetificação e as dificuldades enfrentadas pelos homens negros gays nas questões afetivas. Atua, dessa forma, tanto no ativismo virtual quanto em ações culturais e políticas presenciais.
As iniciativas do Bicha Nagô revelam o espaço para a contestação e reconstrução das visões mais difundidas e estereotipadas da afrohomossexualidade. A resistência a representações simplistas e superificiais produz também ideias de identidade que partem dos próprios gays negros, refletindo a complexidade de seus dilemas e a beleza de suas vivências. Fica evidente o potencial empoderador e o papel ativo que as redes podem ter na construção das identidades, quando os próprios sujeitos se apropriam delas para narrar suas percepções sobre o mundo e sobre si mesmos, potencializando também espaços presenciais de discussão e militância.