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Quênia

Osborne Macharia: a fotografia como esperança
por Rafael Gonzaga

 

Tropas britânicas humilham suspeitos detidos por suspeita de insurgência, 1954. (Foto: Popperfoto)

 
 

A República do Quênia é um país localizado na África Oriental e cercado por países como Sudão do Sul, Etiópia, Somália, Tanzânia e Uganda. Boa parte dessa região pertenceu, entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, ao Império Britânico. Em 1963, após Segunda Guerra Mundial, com o movimento de independência e o enfraquecimento da Inglaterra, o país tornou-se independente.

O Quênia compartilha uma história semelhante à de muitas outras regiões das Áfricas. O escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, no livro Sonhos em tempo de guerra – memórias de infância (Biblioteca Azul, 2015), descreve, de forma soberba, a maneira como sua cultura e sua família se viram arrastadas pelos tentáculos coloniais da administração inglesa, bem como pelo seu braço missionário: após o usufruto ancestral de uma determinada porção de terra, seu pai, um pequeno produtor rural, descobriu, por intermédio da administração colonial inglesa, que ele e sua família já não eram “donos” daquela terra que cultivavam há inúmeras gerações e que, naquele momento, ela pertencia a uma grande empresa estrangeira que pretendia transformá-la em uma propriedade monocultora de exportação de matéria-prima.

 
 

É sob esse viés que a série de fotografias chamada Macicio (pronuncia-se mashishio), criada por Osborne Macharia conjuntamente com Kevo Abbra, pode ser vista, descrita e analisada. Osborne Macharia, vale a pena lembrar, foi um dos artistas africanos a expor no primeiro Festival Afreaka, que aconteceu em junho 2015, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Agora, Macharia conversa com o Afreaka sobre sua história, inspirações e intenções e claro, sobre a série Macicio.

 
 

 

(Fotografia da série Macicio: Divulgação)


 
 

Osborne Macharia nasceu em Mombasa, uma cidade costeira do Quênia, mas cresceu na capital do país, Nairóbi. Aluno do curso de arquitetura na Universidade Jomo Kenyatta, o artista explica o que o levou a desistir da vontade de ser arquiteto. “Eu estudei arquitetura por oito anos da minha vida, porém, no meio da minha formação eu percebi que não seria um arquiteto. Foi quando eu descobri a fotografia no meu quarto ano de faculdade e soube que essa era minha vocação,” explica.

 
 

 

(Fotografia da série Macicio: Divulgação)

 
 

Tal decisão revelou ao mundo um dos fotógrafos mais interessantes da cena contemporânea de África. Sempre antenado com o que acontece no continente africano e ao redor do mundo, Macharia se inspira no cinema, especialmente nas produções cinematográficas em 3D, no design gráfico e em trabalhos de outros fotógrafos, como os do brasileiro Sebastião Salgado.

 
 

Macicio e a independência do Quênia

A série de fotografias Macicio – que em kikuyu, língua materna dos artistas, significa algo como óculos/espetáculo – constitui-se como uma narrativa mágico-histórica sobre um importante grupo que lutou pela independência do Quênia. Com Macicio, Osborne Macharia e Kevo Abbra inventam e descrevem a existência fictícia de um grupo ligado aos guerrilheiros Mau Mau. Tal grupo teria inventado óculos mágicos que permitiram aos heróis da independência observar seus inimigos, os colonizadores e administradores coloniais ingleses, durante a noite.

Os Mau Mau lutaram pela independência do Quênia até a vitória em 1963, porém, quase tudo que se sabe sobre eles foi criado pelo ponto de vista dos colonizadores. Assim, esse grupo sempre foi representado pela mídia e pelas autoridades coloniais como membros de uma seita secreta, supersticiosos, primitivos e tradicionais – entende-se esse último termo, “tradicional”, em contraste àquilo que era “moderno”, isto é, os próprios colonizadores. Aliás, vale  uma breve nota: a dicotomia moderno x tradicional é inerentemente eurocêntrica, pois considera que todas as sociedades não ocidentais, denominadas tradicionais, são a-históricas, “atrasadas” e, inevitavelmente, inferiores às sociedades “modernas”.

 
 

 

(Fotografia da série Macicio: Divulgação)

 
 

Contrariando, dessa forma, tudo o que se sabe sobre os Mau Mau, a série de fotografias Macicio pretende reinventar a história da independência do Quênia a partir de outro ponto de vista. Como objetos mágicos, Macicio emula modernos equipamentos militares de visão noturna, mas tal “simulação” acontece a partir de uma gramática cultural local. Instrumentos oculares são construídos a partir de sucatas eletrônicas modernas (como um toca-fitas antigo), as quais são enlaçadas por uma aura e uma linguagem pré-colonial, não apenas na atmosfera suscitada pela fotografia heroica de Macharia e pelos objetos mágicos de Kevo Abbra, como,  também, pelas formas geométricas e circulares sempre presentes, lembrando a característica essencial das expressões artísticas africanas pré-coloniais, chamadas pelos europeus, no começo do século XX, de Arte Primitiva ou “Tradicional”.

 
 

 

(Fotografia da série Macicio: Divulgação)

Sobre o processo criativo e a intenção da dupla na série Macicio, Macharia nos fornece uma rica descrição. “Quando eu e Kevo Abbra – que foi meu designer e estilista – pensamos nesse projeto, tínhamos como objetivo criar uma série de imagens que fossem independentes e contemporânea e que pudesse conduzir o olhar das pessoas para um mundo fictício que parecesse real e verdadeiro. Kevo Abbra, com a minha ajuda no primeiro momento, concebeu os óculos, mas depois pediu para que eu o deixasse trabalhar sozinho na finalização, tanto dos objetos quanto na indumentária, o que eu fiz. Ele definitivamente não me desapontou,” pontua.

 
 

À primeira vista, ao justapor dimensões e tempos distintos em uma técnica que associa bricolagem de bugigangas, poses e aspectos militaristas com efeitos visuais fotográficos, Macicio poderia ser considerada uma obra pós-moderna, mas não o é, pois invoca, antes de tudo, um engajamento estético e um visual político.

 
 

Ao inventar uma narrativa mágica e associá-la à história oficial da independência do Quênia, os artistas constroem um relato enviesado que descoloniza as visões tradicionais sobre os Mau Mau, até então dependentes dos registros de jornais britânicos, e realocam-nos na tessitura cosmológica do povo Kikuyu, que forma o maior grupo étnico do Quênia.

 
 

Desta forma, Osborne Macharia e Kevo Abbra reconstituíram a história do seu próprio país a partir de uma perspectiva local, relativizando a perspectiva filosófica-política dos administradores brancos ingleses – quando não as invalidando completamente – trazendo sensibilidades e visões de mundo de sua própria cultura para o centro do tabuleiro político da história do Quênia.

 
 
Ao ser indagado sobre a relação entre o domínio colonial inglês e sua arte, o artista responde. “Existem muitas histórias de heróis que emergiram durante aquele tempo e isso abriu muitas possibilidades para que trabalhos  de  fotografia  e  ilustração  lhes dessem vida. A maioria das fotografias que existem, porém, foram tiradas por administradores coloniais e não representam nossos heróis da maneira como desejamos que eles sejam representados. Mudar a perspectiva visual é importante. Tendo visto as reações que eu consegui, quando a história de Macicio ganhou vida, percebo como esse tipo de história é o que as pessoas querem ouvir. Aqui, a esperança é a chave”.