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Brasil / África

O racismo e o teatro na ótica do Coletivo Negro de São Paulo
por Alê Alves

 

“A gente entende que as questões negras no teatro são pouco tratadas ou, quando tratadas, são interpretadas com superficialidade.” (Foto: Divulgação)

 

 

60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais

Já sofreram violência policial

A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras

Nas universidades brasileiras

Apenas 2 por cento dos alunos são negros

A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente

Em São Paulo

Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente

(Racionais MC’s, “Capítulo 4, versículo 3″)

 

 

Presente na cena teatral paulistana desde 2007, o Coletivo Negro é um grupo teatral formado  afrodescendentes que desenvolve narrativas cênico-poéticas sobre questões étnico-raciais e o imaginário coletivo construído sobre a população negra brasileira. Composto por Jé Oliveira, Thaís Dias, Jefferson Matias, Aysha Nascimento, Raphael Garcia e Flávio Rodrigues, o conjunto começou como um grupo de pesquisa cujo foco era a situação sócio-econômica e a produção estética dos negros brasileiros.

 

 

Em 2009, o Coletivo Negro foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural (PROAC), que subsidiou o projeto “Quilombos Urbanos” e sua primeira montagem teatral: “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois…”, realizada a partir de trocas e visitas do Coletivo ao quilombo Ivaporanduva, no interior de São Paulo. A peça conta a história de personagens que se reencontram após sofrerem uma desocupação violenta, motivada pela construção de uma linha férrea no local onde moravam. “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois…” rendeu ao Coletivo Negro duas indicações no prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro (nas categorias “Grupo Revelação” e “Melhor Elenco”).

 

 

O trabalho desenvolvido em seguida foi “Revolver – Um Experimento Cênico” , que traz uma história de Kizúa e Izô, dois andarilhos que sobrevivem ao fim do mundo, quando a humanidade retorna a um “estado inicial”. Ao pé de um antigo baobá – árvore de forte história e simbologia para africanos a afro-brasileiros – a dupla reinventa memórias do mundo dando novo significado aos seus sentimentos e vivências. “Revolver” traz inúmeras referências afro-brasileiras, como o congo, o jongo, o maracatu e o bumba-meu-boi, pensando o dinamismo que envolve tradições.

 

 

“`{Entre}”, espetáculo que traz as histórias de quatro personagens que habitam um conjunto habitacional junto a dezenas de outras famílias, é mais um destaque do Coletivo Negro. A importância dos laços familiares na trajetória de cada personagem – uma mulher grávida e abandonada; um pai que deseja voltar para sua família após desentendimentos violentos com o filho e a esposa; um médico que retorna ao lugar onde nasceu e revê seu passado e um filho que busca encontrar sua identidade e papel no mundo. A peça, que busca apresentar ao público fatores extraordinários nas histórias de pessoas comuns, é inspirada na linguagem documental de “Edifício Master”, dirigido pelo cineasta Eduardo Coutinho.

 

 

Ao criar narrativas e dramaturgias sobre os negros no Brasil, o Coletivo Negro reaviva ideais do Teatro Experimental do Negro. Idealizado pelo dramaturgo, político e professor Abdias do Nascimento, o TEN busca valorizar o negro no em dimensões múltiplas – política, estética, artística, histórica –  formar artistas, produtores e um público negro, além de criar espaços para discussões sobre o racismo e a desigualdade social.

 

 

 

A homoafetividade está sendo mais discutida em relação à heterossexualidade nas periferias, o que é incrível. (Foto: Divulgação)

 

 

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens” é o mais novo trabalho do grupo. Construída a partir de 12 entrevistas com homens negros, colhidas ao longo de um ano, a peça traz vivências que constroem a masculinidade negra nas periferias e as linhas narrativas que escrevem as histórias desses homens.

 

 

Em entrevista ao AFREAKA, Jé Oliveira, dramaturgo, diretor e ator da montagem, contou um pouco mais sobre o enredo, que envolve negritude e resistência: “A peça fala muito sobre a morte, amigos que foram assassinados pela polícia e parentes mortos pelo descaso com a saúde na periferia. Mas a peça é, sobretudo, uma celebração da vida.”

 

 

Qual a importância de trazer a periferia e a negritude para o teatro?

A gente entende que as questões negras no teatro são pouco tratadas ou, quando tratadas, são interpretadas com superficialidade e muitas vezes na terceira pessoa. Entendo que, para fazer uma sociedade mais inclusiva e igualitária, é legítimo e necessário que os próprios negros se auto-representem, interferiram e contribuam para construir um imaginário sobre as questões que a gente vive. A importância é conseguir se auto-representar e ampliar possibilidades de narrações coletivas, que geralmente não estão representadas no teatro.

 

 

Como foi a seleção dos entrevistados?

Um critério que usamos foi idade, queríamos homens de diferentes faixas etárias para ter maior diversidade. Outro se refere a ocupações desses homens. Alguns homens eu sabia quem eram e me interessei por conhecer mais e pedi entrevistas, outros foram indicados por amigos e pessoas próximas. A primeira intenção era entrevistar homens que eu não conhecesse, mas isso não foi possível por vários motivos – muitos não tinham agenda e desmarcaram entrevistas, além de ter uma dificuldade para se falar sobre as questões trazidas pela peça (e sobre a própria história).

 

 

O que essas entrevistas te trouxeram de novo?

Não sei se é exatamente novo, mas trouxeram renovação. Acho que essa é a melhor palavra. Nas entrevistas, vi um empenho ferrenho que temos de luta pela existência e sobrevivência. Todos são sobreviventes de fato, tinham trajetórias doloridas pelas periferias de São Paulo e do Brasil. Ver o quanto esses homens se mantiveram vivos om dignidade e reelaboraram a sua própria história foi muito forte. Eu reelaborei coisas da minha própria história a partir deles. As suas relações com música transformaram relações que eu não tinha, além da minha própria relação com o modo de pensar a negritude. São construções muito diversas, esse trabalho me ampliou as possibilidades e simbologias do que é ser negro.

 

 

Por que falar sobre afetividade do homem negro? Você acha que esse tema está sendo mais debatido nas periferias hoje, comparado a 15 anos atras?

Acho que está sendo mais discutido hoje, isso não existia antes. A homoafetividade está sendo mais discutida em relação à heterossexualidade nas periferias, o que é incrível. Estamos avançando, aos poucos. É difícil dar conta de tudo, mas acho que estamos discutindo mais enquanto movimento (negro), discutindo mais e todas as complexidades humanas.

 

 

 

Presente na cena teatral paulistana desde 2007, o Coletivo Negro é um grupo teatral formado  afrodescendentes que desenvolve narrativas cênico-poéticas sobre questões étnico-raciais. (Foto: Divulgação)

 

 

Algumas mulheres colocaram a questão sobre o modo como a peça trazia o tema da afetividade do homem negro, em um debate ocorrido na FUNARTE no ano passado, após uma leitura dramática sobre a peça. “Farinha com Açúcar” não se debruça muito sobre a maturidade afetiva desse homem negro periférico, mas traz um recorte até a juventude do homem negro. Essa peça exige uma continuação, para tratar mais desse tema, das relações afetivas. A peça acaba quando esse homem vai começar a amar (ou não, porque isso pode não acontecer). Estamos até pensando em uma trilogia – uma sobre infância e juventude, outra falando sobre maturidade e que traz a afetividade com mais força e uma última tratando sobre a velhice. A afetividade que essa peça traz a afetividade com mulheres negras, no papel de mães, irmãs, tias e avós, que criaram esses homens sem os pais.

 

 

Qual a importância dessas mulheres para os homens negros na periferia?

As mulheres criaram esses homens com poucas referências masculinas dentro de casa, que não conhecem os pais ou conviveram pouco com eles. Essas mulheres formaram esses homens. A importância para esses homens é ter para onde voltar, ter uma orientação devida e de uma sensibilidade desenvolvida pelo olhar feminino. A peça traz isso – uma das personagens fala sobre homens, maridos, filhos que ela viveu, fala sobre sua resistência e reexistência. Essas mulheres permitem que que nós possamos existir.

 

 

Qual a importância da farinha e do açúcar para a periferia?

Foi o que salvou a vida de muitas pessoas quando não se tinha o que comer. Quando acaba todo o pão, a fruta, os legumes, às vezes sobra a farinha com açúcar, permitindo que as pessoas continuem existindo, não só no Brasil mas nas periferias do mundo. Uma amiga chilena viu a peça e me contou que, nas periferias de lá, isso acontece também. Imagino que isso aconteça em outros lugares. Farinha e açúcar é o que traz essa sustância.

 

 

A peça também é um tributo aos Racionais MC’s. Por que? Como esse grupo te ajudou a construir a sua negritude?

Os Racionais são citados por pelo menos 8 dos 12 entrevistados. Isso foi muito sintomático e veio muito ao encontro da minha própria trajetória, em que os Racionais foram o disparador de uma condição racial e social. Quando vi que isso se repetia com entrevistados, o que não foi surpresa, pois eu já intuía isso, foi uma união boa. É um processo que aconteceu com a condição masculina nas periferias, da década de 1990 para cá. A presença do KL Jay (DJ dos Racionais MC’s) é uma celebração e presentificação dessa presença dos Racionais.

 

 

Qual foi esse processo, que acontece desde os anos 90?

De lá para cá aconteceu um empoderamento maçiço de homens e mulheres negras em todos os sentidos – políticos, artísticos, de auto-estima, de construção de identidade. E os Racionais são responsáveis com isso, foram um dos primeiros a afirmar e empoderar as pessoas em sua potencia de luta, de raça, de resistência e de beleza. Algumas coisas politicas que estamos vivendo hoje não seriam possíveis sem a existência dos Racionais MC’s. Uma discussão ampla do racismo se deve muito ao fato dessa questão ter sido levantada pelos grupos nos fins da década de 1980.

 

 

Acho que hoje os Racionais continuam sendo uma referência forte para negros e negras de periferia, embora tenhamos hoje um leque maior de referencias, não sei se tão representativas quanto Racionais. Mas há mais possibilidades, estamos presentes em vários âmbitos – e no âmbito artístico, essa presença e essas discussões aumentaram. Na cena musical hoje temos o funk, cumprindo uma função importante, Emicida, Criolo e outras referências, além dos Racionais. O elo continua.

 

 

Como celebrar a vida em um espetáculo que fala muito sobre a morte?

É uma celebração porque é feita por sobreviventes. A celebração da vida vem pela nossa própria existência e pelo nosso ato de criação, por nossa presença no palco.  Vem por essa nossa insistência em continuar vivo e estar em cena, colocando nossas questões, vivencias e necessidades. O nosso ato criativo, civilizador e pedagógico é uma celebração da vida. Se, em metade da peça tratamos da morte, na outra metade mostramos esses homens negros vivendo, conhecendo pessoas, aprendendo e se construindo como homens. Falamos dos que morrem, mas as velas não se apagam durante a peça, mesmo quando a vida acontece.

 

 

Como você se sente, como um sobrevivente que contrariou (e continua contrariando) as estatísticas?

É difícil definir esse sentimento, que envolve a vida e a morte. Me sinto feliz por estar vivo, conseguir viver e criar,  um vencedor por ter contrariado as estatísticas e ter chegado aos 32 anos. Mas a gente, mesmo vivo, morre com os outros negros de periferia que se foram. Com essas mortes, perdemos amigos, familiares, vivências. É uma morte que ninguém tira da gente, uma falta que vai nos acompanhar durante a vida. Acho que esse sentimento, essa relação entre vida e morte é como uma balança, com um equilíbrio instável. Não sei, acho que eu ainda não encontrei um bom equilíbrio e acho que isso dura a vida toda. Tem dia em que eu me sinto mais vivo, mas, em outros, essas mortes pesam muito.

 

 

“Farinha e Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens” está em cartaz na FUNARTE, em São Paulo, até 17 de Abril, com exibições de quinta a domingo. A entrada é gratuita.

 

 

Para saber mais: https://www.facebook.com/coletivo.negro.9/?fref=ts