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Brasil / África

Nilma Gomes e a questão Lobato
por Gisele Falcari

 

Nilma Lino Gomes (Foto: RafaB – Gabinete Digital)

 

 

Nomeada para a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – Seppir, no começo deste ano, Nilma Lino Gomes começou seu mandato vendo a imprensa resgatar a polêmica iniciada em 2010 envolvendo o seu nome e o de Monteiro Lobato. Na época, Gomes, como conselheira do Conselho Nacional de Educação, emitiu um parecer crítico sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”, declarando que o seu conteúdo era estereotipado em relação ao negro e ao universo africano. Indicou, também, que algumas ações fossem tomadas a fim de que a obra não continuasse servindo como elemento naturalizador do racismo na sociedade brasileira.

 

 

Esse documento foi emitido depois que Antônio da Costa Neto, pesquisador das relações raciais, denunciou, à ouvidoria da Seppir, a utilização da obra “Caçadas de Pedrinho”, de Lobato, na rede de ensino do Distrito Federal. Tal denúncia apontava a inversão de valores contida nas edições que circulavam ao dispensar-se um cuidado com a preservação das onças e não fazê-lo em relação à temática racial também presente na obra. Segundo Costa Neto, os exemplares traziam impressas notas explicativas ao leitor, informando-lhe que o livro havia sido escrito em 1933, “num tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo IBAMA, nem a onça era espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje”, mas nada comentava a respeito das imagens estereotipadas sobre o negro utilizadas no livro.

 

 

Quando essa denúncia e o consequente parecer do Conselho Nacional de Educação orientando a Secretaria de Educação do Distrito Federal que “se abstivesse de utilizar o material pelo fato de ele não se coadunar com as políticas públicas para uma educação antirracista” foram divulgados pela mídia, diversos segmentos e pessoas comuns se levantaram para defender ou criticar o livro em questão e seu autor. De um lado, argumentava-se que o parecer atentava contra a liberdade de expressão e correspondia a censura. De outro, apresentava-se a questão de haver, na obra de Lobato, várias passagens mostrando o negro sendo estereotipado e inferiorizado, reforçando, dessa forma, o preconceito e mantendo, nos indivíduos, a ideia de que determinados comportamentos como chamar os negros de macacos são naturais e não desvios.

 

 

Nesse contexto, é interessante analisar o papel da mídia na repercussão do caso por não ter se aprofundado nele e nem contextualizado a crítica de Nilma Gomes e, também, por ter deixado de lado informações relevantes sobre o tema. Ao se abster de divulgar a notícia de forma completa, a mídia passou a impressão de que a denúncia e o parecer se tratavam de censura e não da necessidade de uma contextualização da obra, visto que, no cenário atual, ela pode ser considerada racista. Em entrevista concedida recentemente ao programa Fala, ministro, a atual ministra da Seppir comentou: “O que aconteceu, à época, é que esse parecer foi mal interpretado por vários setores da mídia e literários e pela sociedade civil. As pessoas não o leram de fato e sim viram apenas as manchetes espalhadas por vários veículos midiáticos (…) criou-se a ideia de que eu estava vetando a obra de Lobato, de que estava mandando tirar livros das bibliotecas; inverdades foram criadas”.

 

 

Ainda segundo ela, o texto de sua conclusão foi reexaminado, a nota explicativa que estava dando margem a interpretações equivocadas foi retirada e, em seu lugar, foi acrescentada a orientação que o próprio PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) faz às editoras: uma contextualização do autor e da obra sobre a questão dos estereótipos raciais na literatura.  Tendo ou não se criado “inverdades”, o fato é que a questão colocada com a denúncia e a conclusão do Conselho de Educação criou duas linhas de pensamento opostas em relação ao trabalho em sala de aula e com crianças de alguns textos de Lobato.

 

 

 

Foto: Geledés

 

 

De um lado, tem-se a pesquisadora e crítica literária Marisa Lajolo e outros biógrafos do autor que não entendem que ele possa ser considerado um homem racista. Argumentam que seus pensamentos eram coerentes com sua época e que nem se falava e pensava em racismo naquele momento histórico. Lobato era um entusiasta das teorias eugenistas e mantinha uma intensa correspondência com o médico Renato Kehl, maior propagador dessa teoria no Brasil. Em 1928, ao se corresponder com outro médico, Arthur Neiva, escreveu: “País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma kux-klan é país perdido para altos destinos. (…) Um dia se fará justiça à kux-klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo jogo de galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva”. No entanto, mesmo com tais constatações, de acordo com Lajolo e outros intelectuais, impedir que as crianças entrem em contato com o “patrono” da literatura infantil seria cerceá-las da fantasia, do imaginário e isso não deve acontecer.

 

 

Na contramão desse grupo, estão aqueles que veem, nas obras literárias de Lobato, o aviltamento da negritude e a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre a questão. Estudos e análises “vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos de seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização de negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência, dentre outros”, escreveu Nilma Gomes. Esse trecho demonstra que não se deseja o banimento da obra de Lobato e sim que ela seja lida a partir do olhar contemporâneo, a partir da maneira como essas questões, hoje, são entendidas.

 

 

Gomes aponta para a necessidade de investimentos na formação dos docentes a fim de que possam realizar a devida mediação pedagógica em obras consideradas clássicas que apresentam estereótipos raciais. Nesse momento, entra em discussão outro ponto bastante complexo, pois os docentes que já estão ministrando suas aulas não foram preparados para lidar com essas questões e, como é de conhecimento geral, são submetidos ao sucateamento das condições de trabalhos – infraestrutura deficitária, carga horária excessiva, remuneração baixa, para citar apenas alguns problemas –, ou seja, o professor que trabalha em sala de aula atualmente não possui meios para se aprofundar nessa problemática e, muitas vezes, por desconhecer o legado histórico da escravidão, não considera racista o uso de termos como “macaco(a)” para se referir a negros.

 

 

Na passagem de “Caçadas de Pedrinho” em que tia Nastácia é chamada de macaca, há de se levar em conta que os eugenistas (como Lobato), usando a ciência como muleta moral à escravidão de africanos, escreveram estudos para provar que os negros não eram bem humanos (e sim humanoides) e que estavam, em uma escala evolutiva, mais próximos ao macaco do que o “homem ideal”, o caucaciano. Dessa forma, chamar um negro de macaco é ofender e, por trás dessa fala, encontra-se “captura, sequestro, porão de navio, marca corporal feita a ferro em brasa, separação de parentes, trabalhos forçados, condições sub-humanas de vida, teorias racistas de hierarquização, castigos físicos e psicológicos, estupros, privações, humilhações, pobreza, descaso”, salienta Ana Maria Gonçalves em seu texto “Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola”.

 

 

Diante do exposto, alguns questionamentos urgem ser colocados: por que a imprensa, em 2010 e depois nos anos que se seguiram, ao invés de problematizar a questão, classificou de maneira simplista como censura o parecer de Nilma Gomes e acusou as pessoas envolvidas na denúncia de atentarem contra a liberdade de expressão?  Por que agora que Gomes foi nomeada para Seppir esse assunto voltou a estar em voga?  Por que toda vez que um grupo que sempre foi marginalizado resolve se empoderar e não aceitar mais tal tratamento é rechaçado com o argumento da censura e da violação da liberdade de expressão? As respostas são fáceis de serem encontradas e esbarram na não aceitação, da grande mídia e, também, por boa parte das pessoas, de que o racismo está presente em nossa sociedade em seus aspectos mais rotineiros.  Haver sempre uma negra representando a cozinheira ou a faxineira nas ficções televisivas naturaliza a sua submissão: nada diferente das histórias de Lobato.