As grandes cidades, filhas do século XIX, estão em crise, pois em quase todo lugar nos depararemos com a seguinte cena: centros com muros e mais muros de velhas fábricas ou ruinas desvalorizadas pela especulação imobiliária e cercadas por periferias desatendidas e abandonadas pelo poder público. Aqui e ali, ilhas comerciais, turísticas e residenciais bem protegidas e iluminadas prometendo uma vida segura e pacata. Shangai, São Paulo ou Cidade do Cabo, a paisagem se repete.
O antigo ideal de espaço público e comunitário se fragmentou em paisagens de arames farpados, muros de condomínios e sistemas de vigilância privados. A cidade se tornou uma caricatura de si mesma. Modelo de cidade/resort, todas acabam parecidas de alguma forma, na medida em que proporcionam “belos” selfies para turistas. A cidade pós-moderna almeja o mundo, mas se esqueceu de sua vizinhança.
The taming of the beast, Shanghai, China, 2012. (Foto: Divulgação)
É o caso, por exemplo, da Cidade do Cabo, África do Sul. Com uma população em torno de 3 milhões e meio de pessoas, a cidade é a segunda maior metrópole da África do Sul, perdendo somente para Johanesburgo. Hoje, é um grande balneário que atrai centenas de visitantes, porém, conforme afirma a artista Faith47, as autoridades da cidade se preocupam mais com os estrangeiros do que com seus cidadãos.
All shall be equal before the law, Cidade do Cabo, África do Sul, 2012. (Foto: Divulgação)
Das ruas esburacadas e esgotos ao céu aberto da periferia ao balneário, recheada de hotéis cinco estrelas com uma paisagem pontuada por velas de iates, podemos ver as duas faces de uma mesma moeda: a concentração de renda e a exclusão crescente. Contudo, é da pobreza e do paradoxo que surgem inspirações e força para intervenções artísticas. Nesse sentido, como não invocar algo que o grupo Racionais Mc’s ensinou com suas músicas, ou seja, que “até no lixão nasce flor.”.
‘harvest’ cape town, Cidade do Cabo, África do Sul, 2014. (Foto: Divulgação)
É nesse contexto que a arte pode ocupar as brechas deixadas pela exclusão e retraçar conexões perdidas entre as pessoas e a cidade em que moram. Exemplo disso é a prática revolucionária da artista sul africana Faith47. Reconhecida na cena artística tanto das ruas quanto do mundo da arte, ela produziu obras em grandes cidades da Europa, América do Norte, África e Ásia e exibiu o seu trabalho em diversas galerias pelo mundo.
‘a study of warwick triangle at rush hour’ Durban, Durban, África do Sul, 2014. (Foto: Divulgação)
Na ativa há 15 anos, Faith47 é uma artista de múltiplas habilidades e interesses. Com um vasto arsenal, suas obras utilizam diversas linguagens como pintura através de spray, fotografias e colagens. Seus graffitis são compostos na relação com o ambiente, com a textura das paredes, com os objetos e paisagens circundantes. O próprio local em que Faith47 produz suas obras converge para reforçá-la.
É o caso, por exemplo, da obra The taming of the beasts (Shanghai, China. 2012). Da ruina, do lixo e do descarte da civilização, emergem dois rinocerontes pintados na parede. Eles são brancos, a tinta, seca e escorrida propositalmente, se camufla no desbotado e textura do suporte, mas, ao mesmo tempo, evidencia ainda mais o contraste entre a “bagunça” disforme das ruínas e a homogeneização expressa pelos condomínios residenciais de classe média que despontam ao fundo. Dessa forma, não apenas a pintura na parede, mas, também, o ambiente compõe a experiência estética da obra.
‘a study of warwick triangle at rush hour’ Durban, África do Sul, 2014. (Foto: Divulgação)
Na obra All shall be equal before the law, há o rosto de uma mulher com uma venda no olho, uma referência à alegoria clássica da justiça. Porém, a cena se dá em uma ruina. Faith47 questiona até que ponto a justiça é realmente cega, pois a cegueira dela só funciona para tornar invisíveis os moradores da periferia em prol dos turistas endinheirados. É dos destroços e ruínas que suas obras extraem poesia para denunciar as injustiças não cegas, mas altamente seletivas.
Segundo a própria artista, a cidade não pode se resumir a anúncios publicitários ou outdoors que vendem a cidade como uma mercadoria global. Por isso, ela faz questão de enfatizar as origens street/urbano do graffiti e se mantém fiel ao propósito de utilizá-la como uma linguagem de contestação ao status quo e como uma arma nos combates pela cidade em que vive. Além disso, grande parte de suas obras inspiram cenas da cultura tradicional sul-africana, outra faceta, vale dizer, esquecida pela globalização.
‘you hold no blame for my proud heart’, Cidade do Cabo, África do Sul. 2014. (Foto: Divulgação)
Inspirado pelas letras ácidas e sombrias do rapper Immortal Technique ou pelo riff sujo da banda punk Dead Kennedys, Faith47 procura dar forma aos modos de resistência e protesto que afloram com força nos subúrbios das maiores cidades da África do Sul. Suas imagens viabilizam discursos antes silenciados pela mercantilização festiva da vida e da cultura africana. É o que podemos ler, por exemplo, em frases que acompanham algumas das imagens do artista.
Dessa forma, Faith47 produz boa parte de suas obras na periferia da Cidade do Cabo ou Durban – terceira maior cidade da África do Sul – e suas intenções convergem para o desejo de explorar, espiritualizar e denunciar a queda da humanidade frente à ganância e à destruição. Contudo, Faith47 não se considera uma pessimista inveterada, ela também deseja inspirar outros jovens artistas a produzirem suas próprias visões sobre a vida e a experiência nas periferias da sua cidade. Nesse sentido, ela é otimista, pois acredita no poder emancipador da arte.
Mas suas escolhas são imprevisíveis, seu objetivo maior é tomar as ruas, capturar a paisagem de uma área com um fluxo intenso de pessoas e carros e sentir o prazer de entregá-la à cidade, seus vícios e virtudes. “Amo a maneira com que os trabalhos são temporários”, afirmou em entrevista ao portal Senses Lost. “Nada dura para sempre… O vento e o sol desgastam as imagens… É uma faísca que alguém pode ver, e depois se vai.”