“Se você mora em algum país dos Trópicos e sofre de reumatismo, você terá que gastar em torno de U$$11 para comprar um remédio na farmácia da capital. Isso aconteceu comigo em Kinshasa, no Congo. Na embalagem do remédio eu li que seu ingrediente principal era Capsicum frutescens, (…) e o que eu não sabia é que este é um extrato de pimenta – planta esta que cresce na frente da casa de quase todo mundo. Com o mesmo valor investido, nós podemos produzir 3 kg deste mesmo produto na nossa vila.”
Por acreditar que a principal causa da discriminação e desvalorização por produtos locais é a falta de conhecimento e auto confiança da própria comunidade, Bindanda M’Pia, professor de escola primária no interior do Congo, iniciou seu projeto de educação a favor do conhecimento e conscientização local. Seu maior objetivo é compartilhar informações sobre produtos disponíveis na região, reduzindo a dependência de medicamentos importados.
Plantas e ervas utilizadas na prática da Medicina Tradicional
M’Pia aponta algumas das situações em que a produção agroecologica nos vilarejos poderia ser repensada, por meio da educação ambiental, gerando assim, um maior (e mais sustentável) aproveitamento dos recursos locais: o desperdício da cera de abelha é um exemplo, uma vez que é jogada fora depois do mel ter sido colhido, quando poderia ser utilizada no polimento de sapatos, já que para isso normalmente é importada uma cera cara, artificial e de baixa qualidade; Ou ainda a venda de óleo e coco, que é comercializado nas vilas por um preço muito baixo, mas revendido em forma de sabão por um preço exorbitante pelas mesmas empresas que o adquiriram inicialmente. O mesmo vale para o amendoim, exportado para países europeus para produção de óleo de amendoim, manteiga de amendoim e cosméticos, e depois reimportado por um preço mais alto.
Ele também traz o exemplo de mães que vendem algo tão nutriente quanto a farinha de mandioca, produzida em sua própria casa, apenas para comprar produtos industriais como biscoitos para os filhos – por entender que este produto importado é melhor do que o produto caseiro. Ou ainda de pais que com o intuito de comprar leite em pó para a alimentação de seus filhos, acabam praticando o desmatamento, cortando troncos de árvores milenares, para conseguir uma fonte de renda para as compras. E mesmo assim, os filhos continuam enfrentando problemas de saúde, uma vez que para o consumo do leite em pó, os pais não necessariamente levam em consideração fatores como a água que não é apropriada para uso ou até a garrafa não esterilizada. M’Pia deixa claro que para enfrentar os problemas citados, um dos maiores recursos é o conhecimento, que consequentemente gera a autossuficiência Ele entende que toda a comunidade tem o direito e a responsabilidade de ser autossuficiente no empenho de resolver seus próprios problemas – especialmente os de saúde.
M’Pia também trabalhou em um centro médico em uma igreja do Antigo Zaire, atual República Democrática do Congo. (Foto – Reprodução)
A luta pela educação e empoderamento comunitário de M´Pia já dura mais de uma década. No começo dos anos 2000, trabalhava no centro de atendimento médico em uma igreja localizada em uma vila de Matamba-Solo, no interior do Antigo Zaire, atual República Democrática do Congo. Nesse período conheceu o Dr. Hans-Martin Hirt, companheiro de trabalho, discussões e congressos de saúde por todo o país. Foi em um desses encontros profissionais que a dupla desenvolveu algo especial: um livro com informações e receitas sobre produtos naturais disponíveis na região, “Medicina Natural nos Trópicos”.
Ambos concordam que a medicina natural é, de longe, a melhor solução. “Infelizmente algumas plantas medicinais não têm recebido a investigação merecida. Plantas que podem, por exemplo, curar infecções importantes e predominantes em grupos de populações mais pobres que não podem pagar medicamentos. (…) Sabemos que nossos países são ricos nesta área e que há muito para apreciar”, ratificou M’Pia.
Recorte do livro ‘Medicina Natural nos Trópicos’, página 72. (Foto – Reprodução).
Embora confiem que a “medicina natural seja o jeito mais natural de viver em comunidade”, Bindanda M’Pia e Hans-Martin Hirt explicam que a ideia não é substituir por completo a medicina industrial. Ambos enfatizam no entanto que a medicina natural deva vir sim como primeira opção, o que fomentaria o conhecimento e a consciência daqueles que necessitam dela, para que então, em segundo plano, quando as opções da medicina natural forem insuficientes, o medicamento importado seja cogitado.
Para ampliar o acesso ao livro e ao vasto catálogo natural e conhecimento medicinal ali disponível, além da versão original em francês, foram criadas versões em Inglês, Português e Swahili. A partir de um glossário dividido entre “sintomas” e “nomes de plantas” o usuário pode identificar as páginas em que encontrará a informação que procura. Se o leitor procurar pela palavra alho, por exemplo, descobrirá que seu nome científico é Allium Sativum e que a planta cresce em diversas épocas do ano, com uma altura que varia entre 30 a 90 cm. Ainda aprenderá que cada bulbo desenvolve em torno de 5 e 15 dentes, e que é nativo do hemisfério norte e sul do continente africano. Encontrará ainda informações sobre cultivo, preparação do medicamento e recomendações de uso (cru, cozido ou curtido). Na nota, o aprendiz é instruído, por exemplo, de que o alho é recomendado para casos de ferimentos da pele ou bolhas de queimadura, para picadas de inseto ou escorpiões, malária (na fase inicial), diabetes, pressão alta, gripes, sinusite, infecções por fungo, entre outros. E esta é apenas uma planta, entre centenas disponíveis no livro, uma obra que redefine e enumera a importância e o inestimável valor da medicina tradicional africana.