Moçambique é um país localizado no sudeste africano, banhado pelo Oceano Índico e conhecido pela abundância de recursos naturais e também pela forte veia cultural. São de lá nomes importantes para a literatura, caso do premiado escritor Mia Couto e de Noémia Souza, jornalista e poetisa conhecida por um estilo engajado e que sempre questionou estruturas sociais. A música é outro ponto forte do país, de lá vem a marrabenta, estilo criado ainda nos anos 1930, mas que alcançou o auge na década de 1950 e retornou com força ao topo das listas nos anos 1980. O país também é terra de Lenna Bahule, jovem nascida na capital Maputo. Lançando o primeiro disco solo da carreira, Nômade, que reflete bem sua maneira de pensar, Lenna conversou com o Afreaka sobre música, ser negra no Brasil e a relação entre o continente africano e um dos últimos países a abolirem a escravidão no mundo.
“Eu acho que primeiro é preciso entender o que aconteceu, como essa África veio parar aqui. Isso precisa ficar muito claro, pois eu acho que não está. Vira e mexe eu encontro pessoas que querem ir muito para o continente africano, mas não têm muito claro o que vão fazer. O que é essa África.” É com esta afirmação que a jovem, parte de uma geração que sente cada vez mais a necessidade de expressar e expandir horizontes descreve suas primeiras sensações da vida no Brasil, especialmente em São Paulo, uma de suas cidades mais complexas.
Fã confessa de Hermeto Pascoal, Naná Vasconelos, Barbatuques, Coco e Maracatu, Lenna desembarcou por aqui seguindo sua intuição, foi uma vinda acidental e com data marcada para ir embora. A ideia era ter ido para os Estados Unidos onde entraria na universidade, contudo a vontade de confirmar a viagem o mais cedo possível falou mais alto e a audição foi feita na terra brasilis.
“O plano inicial era ter ido para os EUA, eu ganhei uma bolsa parcial e precisava fazer uma nova audição. Eu podia escolher ficar em Moçambique, fazer a audição de novo e aumentar a bolsa ou vir para o Brasil que tinha a audição um pouquinho mais cedo que Moçambique e depois ir para os EUA. Eu estava num momento interno tão forte que não podia mais ficar lá, então surgiu uma oportunidade por meio de um amigo querido e admirador de meu trabalho que se ofereceu em pagar minha passagem para o Brasil.”
Lenna ainda ressalta que o Brasil foi uma consequência de algo que germinou em seu interior. Não tinha como escapar.
“Quando eu estava lá não tinha uma relação próxima com as culturas populares. Eu sabia que tinha, mas não achava que era dali. Era pra ser uma passagem, porque eu vim para ficar seis meses, vim para fazer a audição, que antecipou e eu perdi. Transferiu para a Colômbia, mas eu não tinha grana pra ir. Quando eu vi estava sem dinheiro e não tinha como voltar pra casa. Eu sinto que isso foi um chamado. O Brasil é um lugar muito fértil criativamente. Meu, tirando a coisa ruim da escravidão os europeus foram inteligentes pra caramba, pois eles pegaram pessoas de vários lugares do mundo e criaram um combo cultural fantástico. Aqui vibra arte. Especialmente São Paulo, que eu acho que de todos os lugares do Brasil é o que mais perdeu sua raiz, seu eixo. Tudo que existe em São Paulo não é daqui, é de fora. Então isso torna SP um lugar especial. Você tem uma pluralidade, uma multiplicidade enorme.”
A moçambicana desembarcou em São Paulo no ano de 2012 e com o passar do tempo foi lidando com as delícias e contradições da vida brasileira em sua maior cidade. Logo uma questão fundamental veio à tona: como é ser negra fora da África e no país que mais recebeu negros africanos escravizados? Números dão conta de que no total as caravelas com bandeiras de Portugal e do Brasil chegaram a transportar cerca de 5,8 milhões de homens, mulheres e crianças.
“O Brasil é um lugar que tem uma história muito sustentada por uma privação de existência. Concretamente com o índio e com o negro. O primeiro movimento que fiz foi comparar com a história de onde eu venho, do meu país. Eu venho de um lugar onde todo mundo é negro, então você não precisa ser negro. Este é o primeiro ponto. O que aconteceu com o Brasil é que foi tudo banido do que era e trouxeram um novo para este lugar. Os negros africanos eram uma coisa em um lugar e ao serem trazidos para cá eles tiveram que ser outra. Eles tiveram que ser para sobreviver,” pontua.
Com mais de 50% da população declarada negra talvez o Brasil seja o país que mais seguiu (de maneira proposital ou não) os costumes africanos. A língua é um dos grandes exemplos desta presença, isso em função dos bantos ou bantus, grupo etnolinguístico que habita principalmente as regiões da África Subsaariana, onde se localizam países como Angola, Moçambique, Camarões e Quênia e falam diferentes línguas como o quimbundo, quicondo e umbundo. Ao atravessarem o Atlântico para a trabalhar como escravos na lavoura acabaram contribuindo para a formação do português falado nos dias de hoje. Muitas são as palavras ourindas destes povos, fubá, macaco, quitanda, dengo, moleque e por aí vai. A África é um verdadeiro alicerce formador do brasileiro. Isso sem falar no jeito de ser, de pensar e nos hábitos religiosos.
Mesmo com toda esta influência ainda é comum se deparar com uma visão romântica ou uma ideia completamente estereotipada de África. Muitos são os brasileiros que na ânsia de compreender a vida africana buscam se sentir como tal, o que não é possível, afinal de contas o país formou sua própria identidade. Existem também os que imaginam uma África rural e pouco desenvolvida. Para Lenna isso se dá pela falta de entendimento com o que se passou durante os tempos de colônia.
“Pra mim o mais óbvio é entender essa multiplicidade de África. As pessoas têm que entender como esta África funciona, como são as mulheres e os homens de lá. O lugar do estereótipo é muito perigoso, pois se cria uma expectativa. Eu sofri isso na pele. Em nenhum momento fui hostilizada, mas houve uma grande expectativa por eu ser negra.
Por exemplo, um amigo meu veio pra cá bem no Dia da Consciência Negra e achou estranho não ter o dia da consciência branca e eu não soube responder. Ele não tem ideia, é outro lugar, outra relação, as pessoas têm que entender isso. Você não vai chamar um africano para participar do Dia da Consciência Negra e esperar que ele levante bandeira, ele não sabe o que é isso,” encerra.
Música, voz e percussão
Com formação em música clássica e inspirada pela cultura popular do Brasil, Bobby McFerrin e o gospel dos Estados Unidos e Moçambique, Lenna Bahule tem em Nômade, seu primeiro trabalho solo e recheado de canções vocalizadas, instrumentais e percussivas, um trampolim para novos horizontes e sensações. Tudo isso em compasso com as origens moçambicanas.
“Eu sempre fui muito ruim de letra e concluí isso ao ver que tinha muitas ideias, mas não sabia como escrever. Daí fui ouvir Bobby McFerrin e mais um monte de gente e fui inventando. Acho que isso se concretizou aqui no Brasil, quando fui fazer parte dos grupos de expressão cultural. A vontade veio bastante de lá (Moçambique), mas foi aqui que se solidificou. Canto popular no Brasil é poeisa do dia a dia. As palavras do Nômade saíram pelo som,” diz.
Mesmo com a forte presença tupiniquim, Nômade faz questão de exaltar a África que corre em suas veias, mas sem deixar de dialogar com a globalização oferecida por uma metrópole como São Paulo. “Acontece que eu vivo em uma cidade global e preciso me comunicar com o mundo. Exatamente por ter crescido em um lugar duplo, tenho a tarefa de traduzir isso pra lá e de lá pra cá. Fico bem no meio. Então é um processo muito forte de entender o global e o mundo africano e conseguir passar esta informação para os dois lados. Não acho que nenhum lado seja mais privilegiado que o outro. Pelo contrário, tenho a obrigação de fazer essa ponte,” reflete.
Aos 26 anos e há três anos radicada no Brasil, Lenna Bahule usa a música como catalisador de sua inquietude e ainda tenta entender as várias maneiras de pensar do brasileiro ao mesmo tempo em que ensina um pouco mais sobre as diferentes realidades de África. Plural, este é o verbo que melhor define esta jovem artista que faz questão de seguir sonhando.
“Eu tenho tanta coisa pra dizer e preciso arranjar um jeito de colocar no papel. É muito difícil isso de colocar emoções no papel. Eu sinto essa fome de poder falar mais para todos, para a África em si. Quero muito contar a minha história, é a forma mais próxima que posso dialogar não só com o continente africano, mas com o mundo. Acho que Nômade é um bom caminho.”
Saiba mais sobre o trabalho de Lenna Bahule e aproveite também para visitar seu perfil oficial no Facebook e curtir Nômade: https://www.facebook.com/lennabahuleofficial