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Brasil / África

Heitor dos Prazeres: ícone artístico e musical do Brasil
por Kauê Vieira

 

A alegria do frevo também foi retratada em suas obras. (Foto – Reprodução)

 

 

Vindo de uma família simples, o filho do marceneiro e clarinetista da banda da Guarda Nacional, Eduardo Alexandre dos Prazeres, e da costureira, Celestina Gonçalves Martins, nasceu no Rio de Janeiro em 1898 – uma década após a abolição da escravatura. Heitor dos Prazeres morou no bairro da Cidade Nova (Praça Onze) e ao longo de sua vida se tornou um dos principais nomes do cenário das artes populares brasileiras. O termo arte popular é atribuído à produção artística de pessoas que nunca frequentaram escolas especializadas, contudo criam obras (esculturas, gravuras, pinturas) com relevante valor estético e artístico, caso de Heitor, que ingressou com força no mundo da pintura por volta de 1937.

 

 

Antes de se tornar nacionalmente conhecido, Heitor dos Prazeres começou a trabalhar muito cedo, ainda aos sete anos de idade, na oficina do pai. Pouco depois do início do ofício de marceneiro, Heitor enfrentou uma das maiores dores de sua vida, a perda do pai Eduardo, que já começava a dar aulas ao filho de técnicas de marcenaria e alegrava os corredores da casa tocando valsas, polcas e choros em seu clarinete, hábito que rapidamente despertou o interesse pela música do pequeno Lino – como era chamado carinhosamente pelas irmãs.

 

 

 

Heitor dos Prazeres dividia seu coração entre o samba e a pintura. (Foto – Reprodução) 

 

 

Apegado ao pai, Lino vivia questionando a mãe Celestina sobre a perda súbita de Eduardo. Para confortar o pequeno a mãe narrava as sofridas jornadas de seus antepassados vindos da África para o Brasil como escravos e definia o falecimento do marido como uma vontade de Deus. O apoio familiar foi uma peça chave para a futura produção do artista, que lutava para fugir da condição social da maioria das famílias negras que, marginalizadas por perseguições raciais e sociais, não arrumavam empregos, moradia e escola, fato histórico que mais tarde resultaria no agrupamento destas pessoas em morros ao redor dos grandes centros, criando assim as favelas.

 

 

Sempre pensando no bem-estar de suas crias, dona Celestina conseguiu matricular o menino em uma escola profissionalizante, onde o pequeno cursava o primário e ainda aprendia mais sobre a profissão de marceneiro. Com o passar dos anos o rapaz acumulava as funções de engraxate, jornaleiro, ilustrador de móveis e ajudante de marceneiro e por volta dos 12 anos de idade, inspirado pelo tio, Heitor começou a dar vazão para seus dons artísticos. Com o aumento do interesse pela música e cultura afro-brasileira, Lino se tornou presença frequente em reuniões na casa das tias. Lá o jovem entrou em contato com o mundo das religiões e ritmos afro, como o Candomblé, jogo, lundu, cateretê e o samba. Durante os encontros, Heitor improvisava versos e os ritmava com instrumentos de percussão, tudo cuidadosamente harmonizado com seu cavaquinho, presente do tio Lalu.

 

 

 

Heitor também fazia parte do elenco do Cassino da Urca, onde cantava e tocava em companhia de Grande Otelo. (Foto- Reprodução)

 

 

A partir deste momento estava sacramentado o casamento entre Heitor dos Prazeres e a música. Diariamente o pequeno era visto saçaricando pelas ruas do Rio de Janeiro com um cavaquinho, a caixa de engraxate e a bolsa de carregar jornais. O mundo parecia não ter limites e tudo era possível para o jovem. O fascínio de Heitor pela vida boêmia dos bairros musicais da cidade maravilhosa crescia em compasso com sua popularidade. Já na década de 20, o menino negro de corpo franzino era conhecido como Mano Heitor do Estácio. Sempre acompanhado dos bambas do samba, como João da Baiana, Cartola e Ismael Silva, foi um dos responsáveis pela criação de diversas escolas de samba, como a própria Mangueira e como a Sai Como Pode, localizada no bairro de Madureira e que viria a se transformar futuramente na Portela, xodó de Heitor.

 

 

A pintura e a Primeira Bienal Internacional de São Paulo

 

 

Consolidado como um dos mais talentosos sambistas da primeira metade do século 20, Heitor dos Prazeres descobriu outro dom até então adormecido: a pintura. Com a morte da esposa Dona Glória, com quem se casou em 1931 e teve três filhas, o artista usou a tinta e o pincel como ferramentas de vazão para a tristeza. A partir de 1937, Heitor dos Prazeres começou a se projetar como pintor e incentivado pelos amigos marcou presença em diversas exposições.

 

 

 

O colorido e os detalhes nos desenhos de Heitor encatam o público. (Foto – Reprodução)

 

 

Talvez um dos pontos mais importantes da carreira na pintura seja a Primeira Bienal de Arte Moderna de São Paulo, que em 1951 reuniu sob a batuta do jornalista, crítico de arte e amigo de Heitor, Carlos Cavalcante, artistas de várias expressões do Brasil e do mundo. Não bastasse o convite, Heitor dos Prazeres ainda foi agraciado com um prêmio criado para artistas nacionais, pelo seu trabalho Moenda, um dos quadros mais cultuados da carreira de Heitor. Entre 1954 e o início dos anos 1960, Heitor dos Prazeres criou ainda os cenários e figurinos para o Balé do IV Centenário da Cidade de São Paulo e realizou sua primeira exposição individual em 1959, na Galeria Gea, no Rio de Janeiro.

 

 

Carregados de cores, as obras de Heitor retratam a vida nas favelas cariocas. Os traços apresentam a alegria de crianças brincando de soltar pipa e balão, homens jogando baralho e sinuca, festas juninas e rodas de samba. Seus quadros se caracterizaram por um estilo bastante interessante: os rostos das pessoas eram pintados lateralmente e com a cabeça e olhar para o alto. Heitor se encontra ao lado dos artistas mais importantes para o desenvolvimento da cultura do Brasil e a proximidade com os elementos da cultura afro e consequentemente com todos os encantos e influências vindas de África fazem do artista um dos principais tradutores da história das primeiras gerações de negros que cresceram na pós-escravidão. Atualmente as obras de Heitor dos Prazeres encontram-se expostas em museus de todos os cantos do planeta.

 

 

 

Repleto de cores, seus quadros retratam a vida no Rio de Janeiro do início do século 20. (Foto – Reprodução)

 

 

Foi também através da pintura que o artista começou a se relacionar profissionalmente com um dos maiores compositores brasileiros de então. A ilustração de Heitor para sua própria música “O Pierrot Apaixonado, chamou a atenção do então jovem estudante de medicina Noel Rosa, que, curioso pelas famas do artista como bom de briga, hábil na capoeira e grande articulador das mais importantes reuniões da cultura afro-brasileira, resolveu visitá-lo pessoalmente em sua casa na Rua Tiradentes. Nesse encontro, Noel, ficou fascinado pela composição de Heitor, sugerindo apenas uma pequena mudança: a substituição do trecho “depois de tanta desgraça, ele pegou na taça e começou a rir” para “Levando este grande chute foi tomar vermute com amendoim”, oficializando assim a parceria de uma das músicas mais importantes do Brasil.

 

 

“Samba é como passarinho, a gente pega no ar.”   - Heitor dos Prazeres