A população negra do Brasil é uma das maiores do mundo e já ultrapassou a marca dos 50% ou cem milhões de pessoas. Aos olhos de um estrangeiro significaria que os afrodescendentes ocupam majoritariamente cargos elevados em empresas importantes, são protagonistas nas decisões dos rumos da vida política e seus rostos e cultura estampam capas de jornais e revistas em cada esquina. Mas, além de confundir a cabeça de que vem de fora, a vida cotidiana no país tropical do século XXI ainda não reflete a imponência dos números. Para se ter uma ideia, segundo pesquisa feita em parceria entre o Instituto Ethos e o Ibope, os negros ocupam 25,6% dos cargos de supervisão, 13,2% dos cargos de gerência e 5,3% dos cargos executivos de empresas brasileiras. É importante ressaltar novamente que, de acordo com o IBGE, os negros e pardos representam 50,7% dos brasileiros.
Com mais de 50 anos de história, a TV ainda é um dos meios de comunicação mais utilizados no Brasil e também um dos que menos refletem sua realidade étnico-racial. A novela, um dos gêneros mais populares de todo o país, foi ao ar pela primeira vez em 1951 ano em que Sua Vida me Pertence de Walter Foster estrelou a programação da extinta TV Tupi sem um único negro no elenco principal. O primeiro negro a protagonizar uma telenovela foi o carioca Zózimo Bulbul, personagem central de Vidas em Conflito, exibida na então TV Excelsior, em 1969. O fato, que pode ser considerado um grande avanço, não mudou muito a realidade de atores e atrizes negras que ainda eram preteridos pelos Tarcísios, Glórias e Reginas. Salientando que não se coloca em dúvida o talento de nenhum dos citados.
A insatisfação já vinha de décadas antes do surgimento da primeira telenovela brasileira. Ainda no teatro, homens e mulheres negras eram deixados de lado e muitas vezes o que sobravam eram papéis caricatos ou pejorativos e preconceituosos. Para atenuar o caso, surge a figura de Abdias do Nascimento e seu Teatro Experimental do Negro. Criado em 1944, o TEN foi fundamental para o desenvolvimento da dramaturgia negra.
Irritado e cansado com atores brancos se pintando de preto para interpretarem negros em cena (o que hoje ficou conhecido como black face), Abdias, um dos mais notáveis militantes pelos direitos dos afrodescendentes, os elevou ao posto de protagonista por meio do TEN. O poeta e dramaturgo assumiu lutas importantes, como a defesa dos direitos das mulheres negras, além de ter trabalhado para que a população afro-brasileira percebesse o racismo sofrido e valorizasse sua própria cultura. Os espetáculos estrelados pelos negros e negras voltaram os holofotes para nomes de peso das artes, como Ruth de Souza, Haroldo Costa e Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo.
Nascido em Uberlândia, Minas Gerais em outubro de 1915, Grande Otelo foi um dos atores mais talentosos do século XX. Multifacetado, podia interpretar tanto personagens sérios quanto os engraçados, além de cantar, escrever e declamar poemas. Ao longo da extensa carreira atuou no rádio e na TV e envolvia todos com suas expressões faciais. O começo de tudo foi por volta de 1926, na Companhia Negra de Revistas, formada apenas por artistas negros e que tinha no elenco nomes como Pixinguinha (atuando na função de maestro), Donga (músico) e Rosa Negra (atriz e cantora).
Fascinado pela boêmia da Lapa e de outros bairros cariocas, Grande Otelo se mudou para o Rio de Janeiro em meados do fim da ecada de 1930. Lá conheceu seu grande parceiro, o músico Erivelto, com quem compôs o famoso samba Praça Onze em uma das muitas idas ao badalado Cassino da Urca. Aliás, até a contratação de Grande Otelo para apresentações, os negros não podiam sequer entrar pela porta da frente do cassino. Práticas do racismo brasileiro. O cinema surgiu na vida de Otelo ainda nos anos 1940, tempo em que estrelou filmes como Moleque Tião e Também Somos Irmãos, ao lado da grande amiga Ruth de Souza.
Contudo, a interpretação mais conhecida do ator foi em Macunaíma, de 1969. Adaptação da célebre obra de Mário de Andrade, que narra as mudanças de um herói preguiçoso e sem caráter, que nasce negro, mas se transforma em branco para emigrar da selva para a cidade. Pela atuação, Grande Otelo venceu o Prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília de 69. No cinema, o mineiro radicado no Rio de Janeiro também fez parte do elenco de um filme não finalizado, It’s All True, de Orson Welles, que apontou Grande Otelo como um dos maiores atores do mundo.
Elogiado por Welles, Grande Otelo protagonizou outro momento marcante para a história das artes brasileiras. Ao lado do então presidente Juscelino Kubitschek e de Pixinguinha, se encontrou com o músico norte-americano Louis Armstrong, que desembarcara no Brasil para uma temporada de shows. Na TV acumula atuações ao lado de nomes como Chico Anysio, Geisa Bôscoli e Ruth de Souza.
Presente no cinema, no teatro e na TV, Grande Otelo se coloca como uma das grandes figuras representativas das artes negras no Brasil. Apesar de todos as conquistas, faleceu em Paris aos 78 anos sem o devido reconhecimento, o que escancara os efeitos causados pelo racismo brasileiro. Dominado por algumas famílias, os veículos de comunicação contribuem para a manutenção da discriminação ao teimarem em não dar espaço para artistas negros contemporâneos, negando sua contribuição para a formação da cultura nacional. Assim, os veículos de mídia alternativa, coletivos e movimentos são indispensáveis no caminho de afirmação da figura do negro como protagonista da construção social do Brasil.
“Todo o ator é um sentimental. Do contrário não seria ator. A gente tem de ser um doido, um sentimental, um idealista. Se não for assim, não poderá ser um bom ator.”