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Brasil / África

A força do vento nos caminhos escritos pela baiana Júlia Couto
por Kauê Vieira

 

“O branco tem que entender que o racismo é dele, que ele é protagonista desse lugar, desse espetáculo. Ele é o protagonista. É ele quem age no racismo. O negro tem que aprender a se defender e a enfrentar isso.” (Foto: Reprodução Facebook)

 

 

Com uma camisa vermelha e brincos simbolizando a espada de Iansã, afinal era quarta-feira, dia da dona dos raios e dos ventos, Júlia chega com um largo sorriso no rosto e abre as portas de sua casa, onde vive com a mãe e os filhos no Nordeste de Amarilina, bairro onde cresceu e mora até hoje. Localizado próximo da praia de Amaralina e bairros de classe média alta como a Pituba, o Complexo do Nordeste de Amaralina é um retrato fiel das desigualdades sociais causadas pela cor de pele na cidade mais negra do Brasil.

 

 

“Eu sou uma negra do Complexo do Nordeste de Amarilna. Não é uma negra de qualquer lugar. Eu sou uma mulher negra, gorda, professora, mãe e do Nordeste de Amaralina. Eu moro perto da favela, mas já próxima da praia. Eu andei isso tudo aqui, nos buracos, nos boqueirões, nos becos, nos sambas todos, em todas as vielas”, comenta.

 

 

Vivendo no limite entre a periferia, habitada majoritariamente por homens e mulheres negras e ‘lá embaixo’, apelidado dado pelos moradores aos prédios na beira da praia – dominados pela classe média soteropolitana, Júlia conta que é vista pelos negros mais pobres como uma moça de grandes condições financeiras, ao mesmo tempo que é medida debaixo pra cima pelos brancos que residem na parte baixa de Amaralina.

 

 

“Há lugares em que o povo (lá de cima) me olha e diz ‘você é lá debaixo minha filha’. Agora, se eu atravessar aqui, do outro lado da rua, essas casas todas. Na minha rua as pessoas que moram na orla entendiam que do lado de cá vivem os pobres e ali (próximo da orla de Amaralina) eram os que tinham grana. Quando eu vim morar aqui a casa era muito pequena. Agora tá assim grandona. E aí foi crescendo.  Tinha isso, só atravessar tem prédio, pessoas com mais dinheiro, pessoas brancas. ‘Seu lugar nem é aqui, você devia tá lá em cima, porque você tá muito escura por estar aqui’ eram coisas que eles diziam.”

 

 

Professora de português, escritora, poeta e atriz, desde de pequena se interessou pelas artes e teve a escrita e o teatro como grandes sonhos, mas em função das limitações financeiras e de um sistema que diz qual o lugar cada pessoa deve ocupar, enfrentou certa resistência ao dividir os sonhos.

 

 

“Com quatro anos eu fiz meu primeiro espetáculo dirigido por Luiz Mafuz e desde então quero ser atriz. Mas eu queria ser atriz, escritora e mais alguma coisa. Eu escrevia pra mim, eu atuava porque amava demais, era uma espoleta e tinha que botar aquela energia pra fora. Na idade que meu filho tá hoje (8 anos) tinha que fazer teatro o tempo inteiro. Eu escrevia muito, mas achava que nenhuma das duas coisas ia me sustentar. Eu não queria ser professora, minha família é de professores e eu achava uma profissão muito difícil. Então desejava ser atriz, escritora e psicóloga. Atriz, escritora e dentista. Sempre alguma coisa que eu achava que ia me dar o sustento; o teatro ia me dar a felicidade e escrever seria minha paz. Então escrevo desde muito nova,” comenta.

 

 

“Oyá é o redemoinho

que afina meu sangue

chega quente atrás da nuca

e se instala fresca pelos meus poros”

(Júlia Couto – Literatura Negra – Coletânea Poética)

 

 

Apaixonada pela poesia, Júlia Couto flerta com os contos, fantasias e novelas. Há tempos cultiva a ideia de escrever roteiro para peças, esquetes e performances. Dona de uma escrita detalhista e descritiva por natureza, possui um processo criativo espontâneo no qual os textos nascem praticamente formatados para a publicação.

 

 

 

Eu sou uma mulher de Candomblé. Eu escrevo muito sobre o meu Orixá e sobre minha relação com os orixás. A minha relação com a natureza. Eu falo muito, tenho muitos textos em volta desse universo, do universo do Candomblé.” (Foto: Reprodução Facebook)

 

 

Não tenho estas vaidades de ‘sou escritora e sou foda’. Eu acho que escrevo bem. Eu gosto muito do que eu escrevo. A escrita ainda é esse lugar de desabafo, de quando a emoção chega e passa pelo estômago. Tudo que eu escrevo é quase que vomitado. Os textos vêm prontos, iluminados de algum lugar. Eu quase nunca tenho muito trabalho. Eles amadurecem dentro de mim.”

 

 

Coletivo de literatura negra de Salvador, a Ogun’s Toques é ponto fundamental na vida de Júlia e converge com sua escrita, que parte do universo de uma mulher negra e mãe solteira do Nordeste de Amaralina.

 

“Eu não sei se eu posso dizer que eu escrevo, que minha literatura é negra, tampouco se podemos categorizar. A minha escrita é muito íntima, então como eu vou botar algo pra fora que não venha desse lugar de mulher negra da cidade de Salvador? Uma mulher que é gorda, mãe e professora e mora nessa comunidade. Então, minha escrita com certeza reflete tudo o que eu sou. Eu não posso falar de outro lugar se não o de mulher negra.”

 

 

Empoderamento pelo Candomblé, escrita e racismo

 

Seguidora do Candomblé há 16 anos e com 15 anos de feitura no santo, Júlia Couto é uma devota do Orixá e carrega no seu Ori (cabeça em Iorubá) os aprendizados de uma religião que conecta os negros do Brasil com os do continente africano. Conhecidamente um espaço protagonizado por mulheres negras, o Candomblé é resistência pura e tem como base o respeito e o contato próximo com a natureza, além de priorizar o convívio em comunidade. O dia a dia e a representatividade dos terreiros são alicerces fundamentais no seu empoderamento e desenvolvimento enquanto escritora e mulher preta.

 

 

“Eu sou uma mulher de Candomblé. Eu escrevo muito sobre o meu Orixá e sobre minha relação com os orixás. A minha relação com a natureza. Eu falo muito, tenho muitos textos em volta desse universo, do universo do Candomblé. Eu acho que o Candomblé é um lugar preto, um lugar negro mesmo. Podem vir os brancos, as portas estão abertas, mas quando eles passam pro lado de cá, eles precisam saber que estão pisando em África. Não estão pisando na Grécia mais não. Saíram de Roma e Grécia e estão em África. A África tem alguns mais claros, o colorismo africano existe, mas o Candomblé é um lugar de África. De volta pra África. Então, quando eu falo de Orixá é bem típico de escrita preta. O jeito de falar é diferente de um branco falando de Orixá.

 

 

Eu acho que os brancos quando falam de Orixá botam um formato, tem um corpo, tem um peito. Não é só a fala escrita não, quando eles pintam, fazem uma escultura, é sempre com um corpo, um negócio que é uma pessoa. Eu acho que o universo preto vai pra um outro caminho, um outro viés. O viés da essência do Orixá, da energia do Orixá. Orixá é pé de vento, o meu nem se fala, é o vento (Iansã). Orixá é isso. Não é uma pessoa que lhe trata como um boneco marionete não. Ele envolve você e aí eu acho que a pessoa branca e a preta vão falar desse universo, desse Orixá, com olhares distintos, que se entrecruzam em um determinado momento, mas são separados”, expõe seu ponto de vista.

 

 

Segundo Júlia, o Candomblé é essencial para o enfrentamento do racismo e por mantê-la na luta. Mesmo que não seja diretamente vinculada ao Movimento Negro ou a qualquer movimento social, a professora e poeta aproveita a educação e o contato com os alunos nas salas de aula para conscientizar e discutir os efeitos causados pelo racismo no Brasil. Sobre o tema é enfática ao identificar os pontos causadores das desigualdades ainda vividas por negros e brancos.

 

 

“O branco tem que entender que o racismo é dele, que ele é protagonista desse lugar, desse espetáculo. Ele é o protagonista. É ele quem age no racismo. O negro tem que aprender a se defender e a enfrentar isso. Eu acho que minha missão é de pontuar. Minha luta é do meu lugar. Eu sou uma professore preta, chego na sala de aula e me identifico desse jeito pros meus alunos se ligarem. Se eu escrevo um texto, é lá que eu deixo um negocinho. Algumas vezes que me tomo pela emoção, que é tão grande e o texto acaba falando sobre isso. O racismo, o enfrentamento do racismo, a questão do empoderamento, do cabelo, posso usar tudo isso num texto, mas acho que uso muito mais na sala de aula e faço essa ação todo o dia,” conta.

*Júlia Couto é a primeira personagem de uma série de mulheres negras baianas que terão sua vida e maneira de pensar retratadas aqui no Afreaka semanalmente.