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Brasil / África

Elza Soares: A Mulher do Fim do Mundo e os ‘Benedito(a)s’ da Música Brasileira
por Kauê Vieira e Rosa Couto

 

Com Elza, a crítica social se expande incluindo assim outras complexidades de nosso tempo. “Eu vou cantar. Me Deixem Cantar”. (Foto: Reprodução/Facebook Oficial)

 

 

Carioca de 78 anos, Elza Soares sempre foi sinônimo de luta e ousadia. Com mais de 60 anos de carreira a cantora, chamada carinhosamente de filha pelo lendário jazzista norte-americano Louis Armstrong pela semelhança entre as vozes, sempre buscou caminhos alternativos na música popular brasileira. Enquanto a bossa nova falava do lado doce da vida, a jovem guarda de amor e a MPB ainda travava uma luta contra as guitarras elétricas, Elza não fazia rodeios ao apresentar a realidade dos negros, tomando como ponto central a mulher negra.

 

 

Filha de um guitarrista e uma lavadeira, Elza Soares nasceu no Morro de Moça Bonita, em Padre Miguel, Rio de Janeiro. Apesar de uma vida pobre, fez tudo que uma criança faz, brincar com os amigos, soltar pipa, mas sem levar desaforo para casa. Ela era conhecida por bater nos meninos. Obrigada a se casar aos 12 anos pelo pai, a garota teve sua infância interrompida e apenas com 15 anos já havia perdido dois filhos. Com 20 já era mãe de cinco crianças. Abandonada pelo marido, Elza criou todos sozinha, contudo nunca deixou de lado o sonho de cantar.

 

 

Quando conheceu o jogador de futebol Garrincha aos 32 anos, Elza Soares provou mais uma vez do veneno machista que paira sobre o Brasil. Em início de carreira, a cantora de A Bossa Negra era acusada pela sociedade de estar envolvida com o craque campeão do mundo apenas por interesse. A situação se agravou pelo fato de Mané Garrincha ter se separado da então mulher para se envolver com Elza. A família brasileira se dizia chocada e a culpava pelo fim do casamento. Elza foi atacada com xingamentos, tomates e de quebra com ameaças de morte. Nada parecia abalá-la e a resposta vinha em forma de música, como no álbum Sangue, Suor e Raça, de 1972 – O que vem debaixo não me atinge, dizia uma das músicas lançadas.

 

 

 

Voz do milênio, Elza Soares toca em temas que incomodam parte da sociedade brasileira. (Foto: Reprodução/Facebook Oficial)

 

 

Os anos se passaram, Garrincha se fora, vítima de cirrose, mais dois filhos também e mesmo assim Elza Soares, agora considerada uma das maiores cantoras do Brasil e eleita pelo canal de TV britânico BBC a voz do milênio, seguia cantando de tudo, samba, MPB, bossa nova, samba-rock e hip hop. Seguia firme em sua missão de narrar a vida dos negros e em especial da mulher negra. Este é o ponto nevrálgico de A Mulher do Fim do Mundo, o mais novo disco e pasmem, o primeiro de inéditas de sua trajetória. Com a participação de um time de músicos dispostos a pensar a realidade brasileira de uma outra forma, o trabalho, quase que biográfico, mostra uma Elza Soares cansada, mas não o bastante para não notar a violência policial contra homens e mulheres negras, o machismo, homofobia e as vistas grossas feitas por grande parte da sociedade sobre estes assuntos.

 

 

Denso, sem rodeios, A Mulher do Fim do Mundo - que tem direção artística de Celso Sim, revela por meio da voz a determinação e melancolia de Elza e a vontade de abordar temas que parecem incomodar e muito alguns setores da sociedade. Com o conhecido timbre rasgado e amplitudes vocais que arrepiam ela exige seu espaço. “Eu vou cantar, eu quero cantar. Me deixem cantar até o fim.”

 

 

A feroz bateria do produtor e baterista Guilherme Kastrup é a combinação perfeita para as guitarras nervosas de Kiko Dinucci (conhecido também por seu trabalho ao lado de Juçara Marçal no Metá Metá) e Rodrigo Campos; passando pelo baixo de Marcelo Cabral, este que muito lembra os acordes tortos do também baixista Itamar Assumpção, para finalmente desembocar na percussão de Felipe Roseno, dando um tom de brasilidade para o urbano. Samba, rock, rap e eletrônico são distribuídos em 11 faixas feitas sob medida para Elza. Músicos inquietos como José Miguel Wisnik, Cacá Machado, Clima, Douglas Germano e Alice Coutinho participam com letras críticas sobre a realidade da vida urbana na metrópole São Paulo.

 

 

 

Tal como Benedita de Elza, Benedito João dos Santos Silva Beleléu, mais conhecido como Nego Dito, Cascavé,  de Itamar Assumpção, também possui suas querelas com as forças policiais. (Foto: Reprodução) 

 

 

Neste disco estonteante há uma faixa intitulada Benedita, fruto de parceria entre Celso Sim e Pepê Mata Machado, que chama a atenção por sua singularidade. Benedito é nome de preto. Normalmente usado para homenagear o santo católico que teria sido filho de escravos, comumente conhecido como ‘O Negro’ ou ‘O Africano’. A devoção a este santo foi trazida pelos portugueses, entretanto em solo brasileiro, Benedito tornou-se o rei dos Pretos Velhos, uma das entidades mais significativas dos terreiros de umbanda.

 

 

A música com nome do santo começa contando a história de um enigmático personagem com a seguinte frase: “Benedito não foi encontrado, deu perdido pra tudo que é lado”, trecho que revela sua condição ambígua de foragido e vítima, metaforicamente mostrado como ‘uma fera ferida’.

 

 

Em certo momento a canção se suspende em um curto silêncio, marcando uma mudança de orientação. A guitarra e o contrabaixo mudam e o ritmo é outro, fato que revela a verdadeira identidade escondida de Benedito. Aqui o título se explica: Benedita é uma transexual procurada pela polícia. A música passa então a delinear a personalidade marginal da personagem atravessada pela santidade de seu nome e por sua condição profana, promíscua: “homicida, suicida, apareceu, aparecida. É maldita, é senhora, é bendita, apavora. (…) Faz do gueto sacristia”.

 

 

Prostituta e perigosa, “ela leva o cartucho na teta, ela abre a navalha na boca”.  A tensão musical aumenta à medida que o encontro entre a polícia e a foragida se aproxima. No ápice, outra pequena pausa faz com que a narrativa musical retorne ao seu início, mostrando o modo magistral com que, mais uma vez, Benedita – ‘Benedito’ para as autoridades e para os com pouca intimidade – escapa da investida policial dando “perdido pra tudo quanto é lado”.

 

 

Contudo, Benedita não é a primeira a receber o nome do santo descendente de escravizados. Outro personagem famoso da música brasileira possui além deste mesmo nome, sobrenome e apelido: Benedito João dos Santos Silva Beleléu, mais conhecido como Nego Dito, Cascavé, que também possui suas querelas com as forças policiais. Nego Dito encarnava a figura do desgarrado social (“não gosto de gente, nem transo parente, fui parido assim”) e também do marginal perigoso que “destranca a porta a pontapé” e acusava “se chamá polícia eu viro uma onça, eu quero matar, a boca espuma de ódio”.

 

 

Este personagem, idealizado pelo músico Itamar Assumpção, funcionou quase como um alter-ego, uma máscara do próprio músico que, com a força do personagem criado trazia para a música sua estética marginal. Nascido na cidade de Tietê, no interior de São Paulo, Itamar Assumpção foi um dos grandes ícones da movimentação cultural iniciada na década de 80, conhecida como Vanguarda Paulista. No início ele tocava com a banda Isca de Polícia, nome que faz referência ao fato de Itamar ter sofrido uma detenção pelo ‘erro’ de ser negro e carregar um gravador portátil, caso explicado na contracapa do segundo disco do grupo, Às próprias custas S/a. Mesclando a figura do gênio e do louco em seu personagem e em sua música, Itamar marcou profundamente a música brasileira. Deixando raízes e frutos. Justificativa para a faixa de A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares.

 

 

A canção de Elza faz referência à de Itamar não só no título. A banda que a acompanha é formada por um time de músicos paulistas fortemente influenciados por Itamar Assumpção. A riqueza rítmica, o canto quase falado, as soluções harmônicas – como o uso de repetições que dão um caráter rítmico à guitarra e ao contrabaixo, além da própria temática tratada, trazem o traço característico da banda Isca de Polícia.

 

 

Entretanto, a música Benedita além de citar Beleléu, atualiza a crítica realizada por ele. Outras questões estão colocadas para além da marginalidade do homem negro. Com Elza, a crítica social se expande incluindo assim outras complexidades de nosso tempo. Três décadas depois, a cantora carioca mostra que ao mesmo tempo em que poucas coisas se alteraram no que diz respeito à violência policial e ao racismo, a discussão cresceu, tomou forma e hoje exige um olhar mais amplo para incluir fatores que compõem a vida no século XXI, como gênero e transexualidade em relação com as questões da raça e classe social.

 

Para ouvir o disco completo: http://www.naturamusical.com.br/ouca-mulher-do-fim-do-mundo-novo-disco-da-elza-soares