O grafiteiro Docta (Foto: Antoine Tempé)
Durante séculos Brasil e África ficaram separados por uma barreira criada pela mentalidade dominadora dos colonizadores. Contudo, nem com os esforços provenientes das nações europeias a conexão entre Brasil e o continente africano deixou de existir. A África está no sangue do brasileiro, no seu amor pela música, na ginga, nas palavras que saem da boca, no colorido das roupas, na arquitetura, enfim, a África vive no Brasil. E o mesmo pode-se dizer do país sul-americano em relação ao continente negro.
Cenário perfeito para ilustrar essa ligação é o Senegal, localizado na África Ocidental, sua capital Dakar está há apenas três mil quilômetros de Natal, capital do Rio Grande do Norte. As semelhanças são as mais diversas, desde o burburinho das feiras livres, os sabores da culinária, até a paixão pelo futebol – é impossível não notar o amarelinho das camisas da seleção brasileira vestindo homens, mulheres e crianças senegaleses andando pra lá e pra cá. O Brasil habita o imaginário africano e vice-versa. Esta conexão vai além das tradições e invade também os muros das grandes cidades, tomados por ilustrações e graffitis. Como no Brasil, no Senegal a arte urbana está ganhando cada vez mais força e se tornando uma arma política poderosa, transformando paredes em vitrines de denúncias nas mãos de jovens artistas.
Inserido no contexto de uma população ainda jovem e aberta para as novidades está o grafiteiro Docta, que dá voz a uma geração determinada a usar a arte como protagonista do desenvolvimento social. Versátil, é membro da turma de pioneiros do graffiti na África e fundador do Festigraff – primeiro festival internacional de graffiti do continente. Antenado com o mundo da cultura urbana e tudo que a cerca, Docta busca sempre adaptar o graffiti, que nasceu no ocidente, para sua realidade. O objetivo é usar os traços de seus desenhos e textos como meio de conscientização para a necessidade de educar, seja pelo direito à saúde ou pelo fim da violência. Para ele o graffiti serve para inspirar, sensibilizar e abrir mentes.
É nessa linha que nasce a Doxandem, fundação social fundada pelo artista, e que criou uma campanha usando o graffiti para alertar a população sobre problemas de saúde e doenças como diabetes, malária, tuberculose e HIV/Aids, pintando nos muros da cidade mensagens de conscientização como “Saúde não tem preço” e “Unidade na Diversidade”. Unindo arte e saúde, a campanha foi mais um exemplo do grafitti como arma de sensibilização e empoderamento da população, trabalho que inclusive lhe rendeu o nome “Docta” (Doutor). Com pensamento social e sempre questionando atitudes tomadas pelas autoridades, o artista demonstra que o graffiti é muito mais do que um simples desenho, na verdade ele é transformador e se apresenta como importante ferramenta na quebra de sistemas vigentes e de conceitos já ultrapassados.
Hoje, Docta, que também atua como formador e professor, é ainda responsável por transformar grafiteiros de diversos países da África e pelo resto do mundo em líderes sociais. Suas obras têm o objetivo de pensar a arte urbana de modo que ela sirva para a população, seguindo o conceito de que o grafite pertence a comunidade, e por isso tem que servir, defender e conscientizar seus membros. As palavras e imagens que escolhe para suas pinturas narram os desafios diários impostos pelo sistema, mas sempre apontando um novo caminho a ser seguido pelos que não concordam mais com certas linhas de conduta. A ideia de Docta é sim questionar, mas sem deixar de pensar alternativas para um presente e futuro mais harmônicos. Com seu trabalho Docta convoca outros artistas senegaleses para também usarem suas ocupações como um trampolim para uma melhor comunicação entre as pessoas e a cidade.
Um dos inúmeros trabalhos do artista localizados na capital senegalesa, Dakar, ocupa as paredes da Embaixada do Brasil e foi realizado durante um evento em dezembro de 2013 para celebrar a ligação entre os dois países. A arte escolhida por Docta leva um Cristo Redentor, máscaras carrancas e elementos da cultura africana, em um crossing de seus trabalhos com o imaginário coletivo da África sobre o Brasil. A ideia era desenvolver um projeto com aquilo que mais lhe agradava no fluir de ideias que tinha sobre o país tupiniquim agregado aos seus valores e alentos senegaleses. “Colocamos cor, colocamos arte e criamos uma mensagem. Acredito no graffiti cidadão e partilhado, para aplicar isso no mural (da Embaixada) e falar da conexão entre as duas regiões, não precisei procurar muito longe dos meus sentimentos”, explica em entrevista ao Afreaka sobre a conexão entre as duas regiões.
Conexão esta que não ficou apenas no muro da Embaixada brasileira em Dakar. Em junho de 2015, Docta esteve pela primeira vez no Brasil, durante o “Festival Afreaka – Encontros de Brasil e África contemporânea”, onde realizou um trabalho com o grafiteiro Alexandre Keto nos muros da Hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade na capital paulistana. Uma família africana, uma máscara de tons fortes e traços políticos, um Baobab e a frase ‘A África é a protagonista do desenvolvimento da África” pintados pelos grafiteiros no muro do centro de São Paulo deixam claro suas convicções e escancaram a união entre o continente africano e o Brasil, seja nas tradições e na história ou seja nas representações culturais contemporâneas. Ambos, engajados, acreditam sem hesitação na arte urbana como ferramenta social de construção e fortalecimento de ideais.
Vídeo em francês sobre o trabalho do Doxandem