width="62" height="65" border="0" /> width="75" height="65" border="0" /> width="75" height="65" border="0"/> /> /> /> />
Brasil / África

A diversidade linguística africana e suas heranças na formação do português no Brasil
por Flora Pereira

 

 

Com 54 países, a diversidade linguística africana impressiona. Atualmente, a África possui 2092 línguas faladas, número correspondente a nada menos que 30% dos idiomas em todo o planeta. Além das duas mil línguas, estão presentes mais oito mil dialetos. Assim, o multilinguismo é característica medular do continente. A presença de inúmeras variantes dividindo os mesmos espaços de convivência acabam por proporcionar singulares e complexas formas de enxergar e interpretar o mundo. No Brasil, pouco sabemos sobre a influência dessa diversidade linguística no português falado por nós. No entanto, antes de pensar no transporte de tais línguas para o lado de cá do oceano e as conexões então formadas, é preciso entender mais sobre suas origens e consequentemente suas diferenças.

 

 

Para que fosse possível um estudo mais aprofundado de tamanha variedade, os pesquisadores R. G. Gordon Jr. e J. Greenberg dividiram as línguas africanas em quatro grandes grupos linguísticos: línguas afro-asiáticas, línguas khoisan, línguas nilo-saarianas e línguas nigero-congolesas. Lembrando que neste caso as línguas de origem europeias e o árabe, que também estão presentes nos países africanos, não estão inclusas, sendo consideradas apenas as línguas originárias do continente. O primeiro grupo, de línguas afro-asiáticas, também conhecidas como camito-semíticas, abriga aproximadamente 240 línguas e 285 milhões de falantes. A região de abrangência de tal grupo vai do norte da África (região do Magreb) passando pelo Sahel e pelo leste da África, extrapolando as fronteiras do continente até o sudoeste da Ásia. O segundo grupo linguístico é formado pelas línguas khoisan. Notório pelo uso de “cliques” como fonemas e um extenso uso de consoantes, é considerado o menor grupo dos quatro, contando apenas com cinco ramificações. Entre os seus falantes estão os bosquímanos, um dos primeiros grupos habitantes do planeta, hoje localizados no sudoeste da África, na região do deserto de Kalahari, nos países Botsuana, Namíbia e África do Sul; e pequenos territórios de Angola e Zâmbia.

 

 

O terceiro grupo é composto pelas línguas nilo-saarianas, que nascem no deserto do Saara, no vale do rio Nilo e na região dos Grandes Lagos. O surgimento dessas línguas é anterior ao processo de desertificação do Saara, que quando acontece, provoca grandes modificações e consequentes ramificações das línguas do grupo. No oeste africano, a maior ramificação é a songai (que abrange diferentes línguas), com mais de três milhões de falantes, presente na Argélia, Benim, Burkina Faso, Mali, Níger e Nigéria. No leste africano, os Maassai, que hoje habitam entre o Quênia e a Tanzânia, representam a ramificação de nome homônimo. Por fim, o quarto grupo, e o mais diretamente ligado ao Brasil, é o das línguas nigero-congolesas, considerado o maior tanto por conta do número de falantes e de línguas, quanto à área geográfica que abrange. As línguas atuais desse grupo são conhecidas pelos sistemas tonais, com diferentes níveis contrastantes de entoação. Abrangem grande parte da África ao sul do Saara, e têm o bantu entre suas numerosas famílias linguísticas.

 

 

Apesar da fartura linguística, dos 54 países que formam o continente africano, 27 possuem línguas vindas da Europa como oficiais; 18 apresentam pelo menos uma língua dos europeus entre as principais; e poucos países possuem uma presença linguística europeia praticamente nula, são eles: Argélia, Líbia, Egito, Etiópia, Marrocos, Mauritânia, Saara Ocidental, Somália e Tunísia. No entanto, com exceção da Etiópia, tais países possuem o árabe como uma das línguas oficiais que não é endógena ao continente africano. Isso aconteceu, pois, desde a chegada a ideia dos colonizadores era ter o controle da África de diferentes formas, uma delas seria a comunicação. Para atingir o objetivo ficou decidido que o inglês, francês, espanhol e português seriam as línguas de base. A ação causou profundas mudanças na maneira de falar dos africanos nos séculos subsequentes.

 

 

O início do domínio sobre a fala ocorreu com a Conferência de Berlim, realizada entre 1884 e 1885, responsável pela ocupação em África pelo Reino Unido, Bélgica, França, Itália, Alemanha, Portugal e Espanha. Apenas Etiópia e Libéria permaneceram independentes politicamente. Foram séculos de exploração encerrados apenas após o fim da Segunda Guerra Mundial, que fez surgir movimentos nacionalistas e lutas pelas independências. No entanto, de acordo com Diego Barbosa Silva, mestre em línguas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor do artigo “Política Linguística na África: do passado colonial ao futuro global”, após as independências, as línguas europeias ganharam um novo significado no continente negro, pois ao mesmo tempo em que os governos locais decidiram utilizá-las, em muitos casos a reconstruíram, mantendo no seu uso a memória das línguas originárias de África. Para ilustrar, o autor prossegue e explica que os idiomas não são tão europeus como se pode imaginar, já que com o passar do tempo sofreram muitas influências locais.

 

 

Estas influências formaram novas línguas, como o crioulo da República de Maurício e de Cabo Verde e o pidgin da Nigéria, e também novas formas de falar, utilizando as línguas locais como base e estrutura, como o português em Angola e o francês do Congo. Para explicar melhor a realidade linguística do continente, seu multilinguismo e a convivência entre línguas africanas e europeias em cada país, a pesquisadora Margarida Petter elucida em seu artigo “Línguas Africanas”, do curso de difusão cultural “Introdução aos Estudos de África”, que foram associadas às línguas diferentes funções e estatutos, sendo divididas em oficiais, nacionais e veiculares. Segundo a professora de Linguística da Universidade de São Paulo, a Língua Oficial é normalmente a falada na escola, no trabalho, na administração e na mídia. Em muitos países, a língua oficial é a língua europeia.

 

 

No entanto, entre outras exceções, na África do Sul são 11 línguas consideradas oficiais; enquanto na Tanzânia e no Quênia, o suaíli divide essa função com o inglês e muitas vezes é mais utilizado do que a língua britânica. Já a Língua Nacional é, como explica a pesquisadora, “uma ou várias línguas locais escolhidas para serem descritas e normatizadas em razão de sua extensão e número de falantes, com o objetivo de serem ensinadas na escola e se tornarem uma língua oficial”. São línguas extensamente utilizadas entre familiares, amigos e na música popular. O terceiro estatuto é o da Língua Veicular, que seria uma língua nacional só que falada por sujeitos de línguas diferentes e que muitas vezes tem maior número de interlocutores do que as próprias línguas oficiais; como o wolof no Senegal, o bambará no Mali, o tswana em Botswana, etc. A autora explica também que, fora tais divisões, encontram-se ainda os “dialetos”, que seriam “variedades regionais”, ou seja, “formas não padrão de uma língua, utilizada em uma localidade com poucos locutores”.

 

 

As línguas africanas que deságuam no Brasil

Durante os 400 anos de escravidão, quase seis milhões de africanos desembarcaram de maneira forçada em terras brasileiras, trazendo com eles a resiliência e complexidade de suas línguas. A diversidade linguística do continente africano foi transportada para o Brasil, tendo participação direta na formação do português aqui falado. Entre as 2000 mil línguas existentes na África, são as línguas nigero-congolesas que contribuem com maior força para o característico falar do brasileiro. Calcula-se que desaguaram no Brasil entre 200 e 300 línguas africanas. Entre elas, especificamente, os grupos vieram de duas regiões.

 

 

 

 

Petter, no artigo “Línguas Africanas no Brasil”, explica que a primeira região é o Oeste Africano, de onde vieram influências oeste-atlântica como o fulfulde e o serer (região do sahel africano); mandê como a mandinga (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau); cuá como o ewe (Gana, Togo e Benim) e o fon (Benim e Nigéria), benuê-congo como o ioruba (Nigéria e países vizinhos); e chádicas como o haussá (região do antigo Império Songhai). Ainda desta região, no entanto, não pertencente a outro grupo linguístico nigero-congolesas, mas sim nilo-saariano, também temos a presença do canúri (Nigéria, Níger, Chade e Camarões). A segunda região de grande contingente de línguas africanas que influenciaram o português brasileiro seria a parte sul do continente, inicialmente a costa ocidental e, mais tarde, a costa oriental. As de maior número de falantes no Brasil foram o quicongo (falado na região do antigo Reino do Congo – hoje República Popular do Congo, na República Democrática do Congo e no norte de Angola), o quimbundo (falado na região do antigo Reino Ndongo, localizado na região central angolana) e o umbundo (falado no sul de Angola e na Zâmbia).

 

 

No entanto, por que, se foram centenas as línguas que vieram do continente africano para o Brasil, sabemos tão pouco sobre elas? É importante lembrar que a colonização portuguesa, para enfraquecer e minar a resistência dos negros escravizados buscou desmantelar grupos linguísticos provenientes da mesma região, com objetivo de dificultar a comunicação entre os prisioneiros e assim enfraquecer organizações de revoltas. Processo que se iniciava já nos navios negreiros, onde tais línguas, por meio da mescla forçada dos povos africanos, passaram por fortes transformações e adaptações. No entanto, o desconhecimento atual não se limita a isso, mas também a uma histórica insistência eurocêntrica e preconceituosa de recusar a participação do africano e de seus descendentes na formação e construção do Brasil atual. Aceitar que nossa língua vigente é predominada de influências africanas, sejam elas na morfologia, fonologia ou pronúncia, é reconhecer não apenas uma contribuição – como algo apenas fragmentado – de África em nossa fala, mas uma participação substancial e indispensável desta na constituição da identidade brasileira.

 

 

Hoje, em nosso dicionário, mais de 1500 palavras são oriundas do continente africano, sendo 300 delas utilizadas cotidianamente pelos brasileiros: abadá, caçamba, caçula, quitanda, quitute, tanga, banguela, bunda, cafundó, muvuca. Estes são apenas alguns exemplos de como as centenas de línguas para o Brasil transportadas são intrínsecas ao nosso dia a dia. Yeda Pessoa de Castro, etnolinguista e doutora em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire, em seu artigo “A influência das línguas africanas no português brasileiro”, explica que tal influência vai além do dicionário: “Explicar o avanço do componente africano nesse processo é ter em conta a participação do negro-africano como personagem falante no desenrolar dos acontecimentos e procurar entender os fatos relevantes de ordem socioeconômica e de natureza linguística que, ao longo de quatro séculos consecutivos, favoreceram a interferência de línguas africanas na língua portuguesa, no Brasil. Isso se fez sentir em todos os setores: léxico, semântico, prosódico, sintático e, de maneira rápida e profunda, na língua falada”. As influências podem ser conferidas, conforme a autora, pelas seguintes divisões:

 

 

 

Fonte: Yeda Pessoa de Castro – “A influência das línguas africanas no português brasileiro.”

 

 

Alguns dos termos citados na tabela possuem claramente uma função religiosa. As religiões consideradas afro-brasileiras, como o Candomblé, a Umbanda, entre outras, são consideradas os mais importantes meios de preservação de palavras e estruturas linguísticas de origem africana. Por resguardarem o modo de falar de seus antepassados, os terreiros prestam um indispensável serviço de conservação e perpetuação da fala. Assim, algumas palavras de origem iorubá, por exemplo, de uso comum nos rituais, como ebó (despacho), ori (cabeça), ayê (terra), ade (coroa), babalorixá (pai de santo), ago (licença), entre tantas outras, foram salvaguardadas e o uso de algumas delas é considerado de fundamental importância histórica, uma vez que já não estão presentes no dia a dia dos africanos de hoje. Além do iorubá, há também o uso do quicongo e do quimbundo, no candomblé angola, e de uma mistura de línguas mina-nagô, no tambor de mina do Maranhão. Exemplos e referências, que deixam claro a importância das religiões e da religiosidade para a preservação do patrimônio imaterial que se configuram os falares africanos que aportaram no Brasil.

 

 

Quilombos e comunidades rurais compostas por descendentes de escravizados também são importantes fontes de resiliências das línguas africanas preservadas, como no Quilombo Cafundó (Salto de Pirapora, São Paulo) e no bairro de Tabatinga (Bom Despacho, Minas Gerais). Essas duas comunidades rurais caracterizam-se pelo uso de dialetos que mesclam o português com as estruturas lexicais africanas. No caso de Cafundó, a língua é chamada de cupópia e traz referências do quimbundo. Já em Tabatinga, a língua é conhecida com “Gira da Tabatinga” ou “Língua do Negro da Costa”. Petter afirma que estes falares se preservaram no Brasil enquanto “línguas especiais”, ou seja, como modos de expressão oral característicos de uma faixa etária ou grupo social, que possui uma função ritualística e de demarcação social. Essas línguas especiais, entendidas como “secretas”, são ainda fortemente utilizadas em suas comunidades.

 
Outros importantes meios de preservação estão nos próprios hábitos culturais dos brasileiros como na música ou gastronomia. No primeiro caso, por exemplo, é possível encontrar essa atuação da africanidade seja no compasso das canções seja nas tradições de oralidade que permeiam o mundo musical. Temos essa influência estampada em expressões de diferentes ritmos: samba, maracatu, jongo, coco, frevo, baião, xaxado etc, que reforçam as estruturas rítmicas e lexicais do continente africano no Brasil. Na gastronomia, além do resguardo de tradições, nomes de alimentos, assim como receitas, trazem consigo uma história intercontinental em suas designações. A África e suas línguas permeiam nosso cotidiano e deságuam suas influências na nossa maneira de pensar e ser, conectando africanidades e brasilidades de inúmeras e profundas formas. Reconhecer a participação essencial da estrutura linguística africana na constituição do português brasileiro é, assim, um passo para o reconhecimento mais plural da nossa identidade nacional, compreendendo o africano e seus complexos e diversos saberes como partes indissociáveis da nossa formação.