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Brasil / África

Davi Nunes: palavras de vida ao Quilombo do Cabula da princesa Bucala
por Kauê Vieira

 

“Nós negros também tivemos muito de uma infância feliz. Não dá pra ficar contando só as mazelas. Do ponto de vista de um outro processo civilizatório, nós fomos felizes nesses ambientes tidos como bastardos, marginais. Ali nós criamos muitas coisas,” Davi Nunes – escritor (Foto: Valdeck Almeida de Jesus/Reprodução)

 

 

A cidade de Salvador é permeada por referências e elementos que contam a história da presença negra no Brasil e consequentemente a história brasileira. A influência e a participação direta dos africanos vindos para cá como escravos se faz vista e sentida a todo o instante, seja na pele escura de mulheres e homens, na arquitetura e composição das feiras livres e dos prédios e alamedas do Pelourinho, até o nome de bairros soteropolitanos como o Cabula. Localizado no miolo de Salvador, o Cabula tem uma história de resistência que data do período escravagista, tempo em que a mata fechada tornava o local atrativo para escravizados fugindo de seus algozes.

 

 

Abrangendo bairros hoje conhecidos como Pernambués, Engomadeira e Narandiba, o Quilombo do Cabula resistiu até 1808 e durante muito tempo guardou uma particularidade interessante, a liderança feminina, esta representada na figura de Zeferina do Quilombo do Urubu. Pois é nesse contexto e local que nasce o escritor e professor formado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Davi Nunes, que acaba de lançar seu primeiro livro infantil, Bucala – A Pequena Princesa do Quilbombo do Cabula.

 

 

“Eu moro no centro geográfico de Salvador, que é o Cabula. Eu e minha família somos do centro geográfico do Cabula, que é um bairro chamado Beiru. Então eu passei minha infância entre Beiru e Narandiba, que é o bairro que minha mãe morava. Em Narandiba eu morava no que a gente chama de beco ou viela. Eu morava em uma outra rua que de certa forma tinha ainda uma natureza abundante. Tinha ainda pé de manga, essas coisas. Minha infância foi uma infância quilombola de certa forma, o que me permitiu imaginar essa personagem Bucala, uma menina negra que vive aventuras no século 19 no Quilombo do Cabula,” explica em entrevista ao Afreaka realizada em uma noite de calor no campus Ondina da UFBA.

 

 

Feito em parceria com o ilustrador Daniel Santana, o livro que marca a estreia de Davi na escrita infantil, é inspirado em sua infância, além de servir de referência para meninas e meninos negros, mostrando que os negros têm sim infâncias felizes e uma abundância de histórias bonitas para contar. “Nós negros também tivemos muito de uma infância feliz. Não dá pra ficar contando só as mazelas. Do ponto de vista de um outro processo civilizatório, nós fomos felizes nesses ambientes tidos como bastardos, marginais. Ali nós criamos muitas coisas”, ressalta.

 

 

Com ilustrações e contornos que impressionam pelo realismo, Bucala narra a história dessa pequena garota negra que nasce no Quilombo do Cabula e se aventura nas matas orgulhosa dos elementos que a fazem negra, como sua cultura ancestral, a cor da pele, o cabelo crespo etc. Para Davi essa ação afirmativa é importante para que crianças negras não tenham como referência apenas a cultura eurocêntrica, deixando de lado o passado africano e tudo que compõe o mundo negro.

 

 

“Eu fiquei observando minha sobrinha um certo dia em que ela estava totalmente interpelada com os signos advindos da branquitude, boneca loira gigantesca, ouvindo Justin Bieber e senti a necessidade de criar algo que ocupasse o espaço lúdico da minha sobrinha e que trouxesse a ancestralidade, trouxesse a negritude para ela. Eu inicialmente escrevi um conto adulto de umas sete páginas e se chamava Bucala também. Daí falei com Daniel Santana, que é o ilustrador, que tinha tido a ideia de criar esse personagem infantil. Imaginei essa menina com o cabelo crespo em formato de coroa de rainha, com poderes como o de proteção do quilombo,” explica.

 

 

Ainda sobre o processo criativo, o escritor reconhece a responsabilidade e o cuidado que se deve ter ao escrever para crianças, especialmente para as negras, que como o mesmo Davi Nunes ressaltou, são bombardeadas o tempo todo com referências e leituras que apagam as ligações com a ancestralidade africana, colocando-as sempre em um espaço limitado e de passividade.

 

 

 

“Eu acho que Bucala de certa forma é algo bastante novo. Óbvio que muitos negros já escreveram literatura infantil, mas acho que esse livro de certa forma parece ser um divisor de águas, porque ele foge das questões caricaturais que normalmente os livros infantis fazem, traz muito de informação e de vocabulário vindo das línguas africanas.” (Foto: Reprodução/Ilustração Daniel Santana)  

 

 

“Eu digo pra você que reescrevi Bucala por muito tempo, porque a literatura infantil é complicada. Você tem que sair dessa coisa adultocêntrica, se deslocar desse centro e tentar mergulhar nesse universo infantil. Eu passei muito tempo observando minha sobrinha, observando outras crianças pra começar a escrever. Sendo que eu não tinha experiência com literatura infantil. Eu escrevia contos, escrevi um romance, poesia e aí quando fui pra literatura infantil fui estudando, percebendo a forma de criar uma expressão estética. Eu acho que Bucala de certa forma é algo bastante novo. Óbvio que muitos negros já escreveram literatura infantil, mas acho que esse livro de certa forma parece ser um divisor de águas, porque ele foge das questões caricaturais que normalmente os livros infantis fazem, traz muito de informação e de vocabulário vindo das línguas africanas, principalmente do banto e tem toda essa coisa criativa com a língua, de mudar o nome, de fazer essas brincadeiras. Veio muito da minha infância, a gente costumava fazer isso de trocar as palavras, fazer outro idioma, um idioma de códigos para os mais velhos não perceberem o que a gente tava falando. Então peguei todos esses elementos infantis e da minha infância e revesti numa linguagem. Numa estética,” conta.

 

 

A África é fundamental para a formação do Brasil e se faz necessário que isso seja dito a todo o tempo, especialmente em um país racista e que tenta de todas as formas apagar e invisibilizar a presença negra na sua constituição. Nessa linha a escrita e a língua são elementos fundamentais para a mudança do cenário. Ao contrário do que se pode imaginar, o português brasileiro está mais para pretoguês, como bem batizou a intelectual, ativista, política e antropóloga Lélia Gonzalez. Tal afirmação é reforçada com o impressionante número de mais de 2500 palavras de origem africana. Sabia que palavras como bunda, macumba, cafuné, cachaça, entre outras, chegaram a partir do continente negro?

 

 

“O nosso português, como bem descreveu a professora Yeda Pessoa de Castro, vem muito dessa influência da língua banto. Quimbundo, umbundo, que foram os primeiros negros a chegarem aqui no nosso território e isso entrou na estrutura da língua profundamente, então quando eu reavivo isso na literatura, estou realmente falando do português do qual a gente fala, que a gente usa no cotidiano. Outro dia escrevi um texto falando da palavra mocambo e no dicionário a palavra mocambo significa ‘habitação pífia’. Só que aí eu lembro de minha vó usando essa palavra mocambo e o mocambo que ela falava é totalmente diferente do que está no dicionário, porque o mocambo dela era o quilombo íntimo. Era o espaço, a casa onde ela tinha um controle, exercia o poder, dava ordens pros netos e filhos, onde ela tinha toda uma construção de poder que não casava com nada que estava dicionarizado. Então assim, com o dicionário a gente vê como a coisa não é imparcial. Ali você tem o racismo também influenciando na construção de significação das nossas palavras advindas de origem africana. Elas são dicionarizadas, mas interpeladas pelo racismo pra dar uma significação normalmente negativa de algo que é positivo. E isso vai entrando na nossa cabeça e vai criando todos os processo de negação do uso até das palavras,” afirma Davi, que enxerga o uso de palavras de origem africana como uma espécie de ativismo literário.

 

 

“Quando eu uso essas palavras no meu livro, eu já uso dentro de um outro sentido, que é no sentido real do que eu vi minha vó falando, do que eu vi as pessoas da minha comunidade falando, totalmente diferente do que está dicionarizado. É isso que eu busco fazer na minha literatura, ressignificar até o que está dicionarizado. Essa coisa que eu falei da restauração. A gente fala muito em construção e desconstrução, mas eu acho que é restauração também, porque se existia antes desse processo de favelização e de racismo, se antes a gente tinha todo um outro processo positivo e isso foi sendo destruído de certa forma e interrompido durante esse processo de 500 anos nessa diáspora de desespero que a gente vive, o que eu busco fazer é restaurar. Isso tá presente no nosso corpo, na nossa fala, parece que é uma coisa distante, mas não. Tá ali ainda, né?”

 

 

 

“Com ilustrações e contornos que impressionam pelo realismo, Bucala narra a história dessa pequena garota negra que nasce no Quilombo do Cabula e se aventura nas matas orgulhosa dos elementos que a fazem negra.” (Foto: Ilustração de Daniel Santana) 

 

 

A suposta escrita periférica. A suposta África negra em Salvador

 

Davi Nunes nasceu e cresceu no bairro do Cabula, bairro da negra periferia de Salvador. Contudo, até que ponto a vida periférica se faz presente em sua escrita? Será que seus livros de uma forma ou outra vão sempre refletir este olhar de uma realidade diferente do centro e outras regiões, digamos, mais embranquecidas da Roma Negra? Há algum tempo é comum se deparar com rótulos como escrita periférica, escrita negra ou produção LGBT, por exemplo. Contudo, quão tênue pode ser essa linha imaginária entre a visibilidade e a limitação de atuação? Pessoalmente Davi busca se distanciar do termo escrita periférica, que segundo ele é usado pela branquitude para cercar e monitorar os espaços que podem ser acessados e ocupados.

 

 

“Isso é delicado. Muito delicado, porque de certa forma o Cabula é o local da minha cartografia afetiva, é um local onde os signos são mais latentes pra mim. Esse local de infância com todos esses signos é algo latente e é um bairro periférico. Eu não tenho muito essa coisa que a galera utiliza de ter orgulho de ser favela, porque assim, você vai ter orgulho de um local que você vive numa situação de sub-humanidade? Num local onde te colocaram devido questões do racismo estrutural. Esse local do escanteamento. Esse local do ‘ó, você só pode ficar aí’. Você não pode ir para os outros espaços porque não te pertence. Aí quando eu penso a nossa história mais ancestral, nosso local era outro. Se já fomos reis, faraós do Egito, se já tivemos reinos em vários locais da África. Imagina, os Dogons, tivemos aquilo tudo nesse processo onde nossa humanidade era plena. Então, eu não posso ter orgulho de ser favela, é muito pequeno pra mim. É muito pequeno para o meu povo, então venho desse local (periferia) e minha literatura reflete esse local, mas ao mesmo tempo, eu perpasso por outros locais sociais. Escritor periférico parece aquele negócio de não dominar a norma padrão, a norma culta. É tipo,  ‘ele escreve na variação linguística dele lá e a gente vai aceitar aqui’, sabe? Não, eu tenho o domínio da língua, seja a norma culta ou das suas variações,” pontua.

 

 

O escritor segue o raciocínio afirmando e reafirmando as ligações com o passado ancestral em sua escrita. “Eu posso explorar a língua em toda a sua totalidade, eu posso utilizar uma linguagem voltada para a norma da padrão, a norma culta, eu tenho essa liberdade. Eu gosto de transitar. Eu acho que a minha literatura é uma literatura ancestral. Estes são nomes normalmente dados pela branquitude, até o termo literatura periférica é dado pela branquitude pra colocar você num local unidimensional. Pra mim isso é coisa do racismo, que infere na nomenclatura. Eu acho que o escritor mais esperto não tem que se fechar nisso não. Pra mim o termo ancestral cabe melhor, porque vai caber esse presente periférico, o passado e a projeção de futuro. Vai caber todos os aspectos da multidimensionalidade que nos norteia como humanos. Então é isso, eu acredito nisso e não sei se é uma quebra de conceito com o que está aí, mas nada me agrada dentro desse conceito posto para o escritor negro. Não tenho um local seguro não. O conceito de ancestral me alegra mais,” finaliza.

 

 

Ainda se tratando de rótulos, o baiano e a cidade de Salvador são dois exemplos necessários para a discussão. Ao se tratar de Brasil, a imagem vendida para o Sul do país, financeiramente mais favorecido e para turistas da Europa e Estados Unidos, é de que Salvador se coloca como uma verdadeira democracia racial, um pedaço da África no Brasil e que mulheres e homens negros protagonizam a cultura, as festas, o carnaval. Contudo, quando se desembarca nesta metrópole de cerca de 3 milhões de habitantes e 82% da população composta por pretas e pretos o argumento da cordialidade racial cai por terra. Na capital baiana o racismo não pede licença e está escancarado no domínio do poder pela normatividade branca. Em Salvador fica literalmente claro os lugares que podem ser acessados pelos negros e sim eles estão bem longe das praias e cartões-postais da capital baiana.

 

 

“Ser negro em Salvador é você viver de certa forma com muito padecimento, porque assim Salvador é um local onde a branquitude detêm todos os poderes, deixando os negros em eterna disputa pelas sobras. É uma cidade extremamente racista, porque o racismo de certa forma é um fantasma que tem mandíbulas de leão e dilacera o tempo todo nossa pele. Tem outra coisa, essa construção desse negro baiano que samba, que rebola, essa cidadania lúdica que nos é colocada é o que tem de mais horrível por aqui. Sempre esse é o nosso local, sempre a gente produz a arte, mas quem organiza? Pra você ter uma ideia, a branquitude que organiza o carnaval, organiza todas as festas, nosso corpo só dança dentro de uma estrutura feita pela branquitude. E dança da forma como eles querem. Nós não somos livres nessa cidade.

 

 

Salvador é uma cidade complicada para o negro, apesar de ver muito negro na rua, você precisa ver qual situação. Tô falando muita coisa mal da cidade, né? Mas é isso mesmo, a cidade que não pode ser só um corpo. Nós negros não podemos aceitar esse ser só corpo. Corpo lúdico, sexualizado e de entretenimento. Mas eu tenho esperança. Não sei como vai acontecer isso, mas minha literatura busca achar essa luz no horizonte. Talvez aí a periferia seja o local desse processo, unido com esse processo de educação que a gente veio tendo, voltando para a periferia, criando as nossas escolas, as nossas creches. Uma coisa interessante, a gente tem os nossos filhos e dá pro nosso inimigo educar, então como é isso? Acho que a gente tem que educar nossos filhos, a nossa comunidade de acordo com os nossos princípios civilizatórios, que são diferentes. A literatura ajuda nisso,” encerra.

 

 

Ter o domínio da fala e escrita em um país que não permite o acesso da maioria da população negra às escolas e universidades é um privilégio e uma arma fundamental no combate ao racismo e pela a conscientização. Davi Nunes é mais um nome, escritor, negro e de periferia e em busca de expansão, não de limitações. Com Bucala – A Pequena Princesa do Quilombo do Cabula planta a semente da consciência racial e a da necessidade de referências e principalmente do protagonismo da produção de conteúdo afrocentrado por mulheres e homens negros. Por isso é importante que seu trabalho seja prestigiado e incentivado.

 

 

Em tempo, o escritor mantém um blog, Duque dos Banzos, que versa sobre a cultura afro-brasileira: https://ungareia.wordpress.com/

 

 

Aqui você pode saber como adquirir o livro:

https://www.facebook.com/davi.nunes.96?fref=ts