width="62" height="65" border="0" /> width="75" height="65" border="0" /> width="75" height="65" border="0"/> /> /> /> />
Brasil / África

Conexão Brasil-Cuba e a territorialidade banto são focos de exposição no Maranhão
por Juliane Cintra

 

Foto: Ensaio Fotográfico por Denise Eloy, exposição Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil, fotos originárias Márcio Vasconcelos e Roberto Chile.

 

 

Ao desvendar a diáspora africana desponta a conclusão de que a América Latina é, definitivamente, o epicentro do extraordinário no mundo. Tal constatação se vislumbra ao explorar criativamente conexões seculares entre Europa (Portugal), África (Congo e Angola) e América do Sul (Brasil e Cuba) por meio do projeto Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil e em Cuba. Concebida pela antropóloga Ana Stela Cunha, a iniciativa é composta por um conjunto de ações, entre elas uma exposição e um documentário, que tratam das reelaborações religiosas de origem banto nestes países.

 

 

Banto é o nome que se dava a inúmeras populações que viviam na porção sul-equatoriana da África, sua presença era tão forte que eles acabaram por ocupar uma enorme extensão territorial, hoje composta por uma área que inclui os países de Camarões, Gabão, República Centro-Africana, Congo-Brazzaville, Uganda, Quênia, Tanzânia, República Democrática do Congo, Angola, Zâmbia, Zimbábue, Moçambique, Namíbia, Botsuana e África do Sul. Compreende-se que estes povos – diversos em suas línguas, formas de organização sociais e políticas – iniciaram sua ocupação em 3000 a.C., sendo um dos principais grupos escravizados até o final do século XVII.

 

 

 

 

A religiosidade é um dos principais marcadores destas sociedades, que acreditavam na interação constante entre dois mundos: o visível (dos seres humanos, a terra) e o invísivel (dos espíritos e deuses). E é justamente com este olhar pelo sagrado que a proposta de Ana Stela, com Caboclos e Nkisis, recupera este imaginário comum de uma África antiga ressignificada em Cuba e no Brasil.

 

 

“Para além de ritos, cantigas e divindades semelhantes e até mesmo incomuns, a conexão Cuba-Brasil a partir da herança banto está justamente neste imaginário sobre África. Tanto aí quanto lá, foram pelo menos dois séculos de um total silêncio sobre o continente africano. Conhecíamos a África que chegava com os primeiros viajantes, que vinha com a escravidão. Tais fontes se mantiveram e com passar dos anos muitas das histórias que traziam foram sendo reelaboradas. Certamente, a religião teve papel forte na manutenção de algumas das tradições e formas de encarar o mundo a partir da perspectiva banto”, comenta Ana Stela, em entrevista para o Afreaka.

 

 

 

Foto: Ensaio Fotográfico por Denise Eloy, exposição Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil, fotos originárias Márcio Vasconcelos e Roberto Chile.

 

 

Se no Brasil, durante aproximadamente trezentos anos cerca de 4 milhões de africanos chegaram como escravizados  – de acordo com dados do IBGE – Cuba recebeu legalmente até 1867, cerca de 600 mil pessoas, segundo historiadores apresentados pela publicação derivada do projeto Caboclos Nkisis. Ambos índices são impressionantes se considerarmos as diferenças e o significado proporcionais de tais dados. Ana Stela chama a atenção para o fato de que a maioria desses africanos possuíam origem banto e foi justamente sua capacidade de adaptação que potencializou sua influência na construção das sociedades brasileira e cubana. “Os bantos foram muito sagazes e inteligentes em um cenário de extrema opressão. Na luta contra a diluição de suas crenças e tradições, se adaptaram ao cristianismo como forma de resistir e tornar viva sua cultura. Dessa mescla, da assimilação, temos uma das matrizes do Brasil e de Cuba, daí surgem os cruzamentos que nos aproximam enquanto povos”, ressalta a antropóloga.

 

 

O processo de construção do projeto envolveu religiosos, acadêmicos e artistas cubanos e do Maranhão, um dos locais que recebeu mais escravizados de origem banto no Brasil.

 

 

Em Cuba, mas especificamente em Havana, foram abordadas as manifestações culturais e religiosas relacionadas ao Palo Monte, também conhecida como “Regla Conga” ou brujería cubana, cuja “ancestralidade remete aos escravos provenientes da zona hoje conhecida como Baixo Congo, que engloba tanto o norte de Angola quanto o oeste da República Democrática do Congo”, conforme explica Ana Stela em seu artigo Cuba e Brasil, para além da geografia duas ilhas um mundo.

 

 

 

Foto: Ensaio Fotográfico por Denise Eloy, exposição Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil, fotos originárias Márcio Vasconcelos e Roberto Chile.

 

 

Já no Brasil, o enfoque dado foi aos terreiros situados em quilombos, localizados na Baixada Ocidental e na zona dos Cocais do Maranhão, nas cidades de Codó e Guimarães. Neste caso, as religiões estudadas foram Pajés de Negro, Terecô e Tambor de Mina.

 

 

A exposição permanece no museu de cultura popular, Casa de Nhozinho, no Centro Histórico do Maranhão, até dezembro. Após essa temporada, a exposição será levada para Portugal e também para Bélgica. O projeto teve o patrocínio do Oi Futuro e também da Lei Estadual de Incentivo à Cultura.

 

 

Palo Monte: o mistério da bruxaria cubana

O Palo Monte é uma religião iniciática extremamente estigmatizada em Cuba, conhecida por solucionar problemas de forma rápida, ela ainda abriga o medo e a desconfiança. Ao contrário da Santería, popular entre os turistas, o Palo ficou restrito ao universo local.

 

 

A pessoa se inicia no Palo Monte pelos mais diferentes motivos que vão de um problema com a polícia, passam pelo desejo de deixar o país, para desfazer alguma maldade atribuída ao mundos dos espíritos e até mesmo como pré-requisito para “fazer-se santo” na Regla de Ocha (Regla é o nome dado as práticas religiosas afro-cubanas).

 

 

 

Foto: Ensaio Fotográfico por Denise Eloy, exposição Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil, fotos originárias Márcio Vasconcelos e Roberto Chile.

 

 

Assim, por meio de um pacto com um “muerto” nasce um “ngueyo” (filho) que posteriormente se converterá num Tata (pai). Este juramento se dá sobre uma nganga, receptáculo mágico, no qual habitará a força, a vitalidade do nkisi, espírito que irá trabalhar com o Tata, sacerdote do Palo Monte, também conhecido como palero ou gangulero.

 

 

Segundo Ana Stela iniciar-se no Palo Monte significa firmeza e desenvolvimento, dois elementos fundamentais no universo religioso cubano.

 

 

Pajés de Negro, Terecô, Tambor de Mina e a força do poder de cura

O Tambor de Mina para os antigos é a religião que detém o poder da morte, vislumbrada sempre envolta a muito mistério, foi em seus batuques aceitos como “coisa de preto” em pleno século XIX que os pajés encontraram abrigo às perseguições daqueles que traziam a ciência e os primeiros hospitais ao Brasil.

 

 

 

Foto: Ensaio Fotográfico por Denise Eloy, exposição Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil, fotos originárias Márcio Vasconcelos e Roberto Chile.

 

 

“Os pajés praticavam a cura, adotavam a denominação de cientistas e se orgulhavam disso, eram muito valorizados não somente pelos seus iniciados, como também por parte de muitos colonizadores. O que muda drasticamente com avanço dessa ciência acadêmica e tradicional que despreza outras práticas de tratamento, ainda mais aquelas gestada em meio a negros e índios. Perseguidos, os iniciados no Terecô se aproximam ainda mais do Tambor de Mina, seguindo suas curas nesse universo visto pelos brancos como expressão primária e inferior de povos originários. Mal sabiam eles…”, ironiza Ana Stela.

 

 

Encantados são espíritos de pessoas que um dia viveram, mas não morreram, e permanecem em constante trânsito entre o mundo visível e invísivel por meio da cabeça de seus filhos e iniciados. Além da presença dos encantados, no Terecô e na Mina, a comunicação com o mundo dos espíritos também ocorre por meio de sonhos e premonições. Daí vem a valorização a Santa Luzia entre os “curandeiros”, divindade reconhecida pelo seu poder da visão e vidência, ela é a dona dos olhos.

 

 

O desconhecimento e a intolerância religiosa: o racismo à serviço de apagar a história

Ana Stela explica que as religiões analisadas em sua pesquisa são extremamente marginalizadas mesmo inseridas no contexto da práticas sagradas de matrizes negro-africanas. Sendo comumente associadas a um ideario negativo das bruxarias e magia negra, são discriminadas e ainda enfrentam graves perseguições.

 

 

Além de estabelecer as conexões entre o Terecô, o Tambor de Mina e o Paje dos Negros com o Palo Monte, o projeto Nkisis e Caboclos tem por objetivo valorizar e entender os impactos da influência africana entre os povos negros da América do Sul (Brasil e Cuba) a partir dos traços dessas “periferias religiosas”. “Somente por meio dessas descobertas vamos dar conta dessa convivência com as diferenças que se faz urgente na atualidade”, conclui.

 

 

Para acompanhar o trabalho de Ana Stela Cunha é possível acessar seu caderno de campo digital: http://sobola.hypotheses.org/. Neste espaço virtual, dá para conferir parte das fotos presentes na exposição e também na publicação Caboclos Nkisis – a territorialidade banto no Brasil e em Cuba, como outros trabalhos relacionados a africanidades e diáspora desenvolvidos pela pesquisadora.