Ainda criança surge o desejo em Cidinha da Silva pela escrita. A mineira, formada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, começou a publicar artigos acadêmicos sobre relações sociais, de gênero e diálogos com a Educação e Juventude. Em 2006, cedeu ao forte ao desejo de contar suas próprias histórias. Escritora, posicionada politicamente e portadora de aguçado senso crítico, transmite nos seus trabalhos o sentimento de indignação e revolta ao racismo que, para ela, muitas vezes, está amparado por formas cordiais e afetuosas no dia a dia.
Em Cada Tridente em seu lugar, seu primeiro livro, abordou as ações que visam garantir o acesso e a permanência do negro nas universidades. Depois passou pela literatura infantil com os livros Os Nove Pentes D’África (Mazza Edições, 2009), Kuami (Nandyala, 2011), o Mar de Manu (Kuanza Produções, 2011), se permitindo fabular e resgatar da africanidade brasileira os valores de amizade, amor e esperança. Até o momento, já publicou oito livros, entre romances, literatura infanto-juvenil e crônica.
Seus dois últimos livros Oh, Margem! Reinventa os Rios (Selo Povo, 2011), e Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (Conversê, 2013) retomam, fortemente, as relações de gênero e étnicas no Brasil. Seu livro mais recente Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil foi publicado pela Fundação Cultural Palmares e pode ser solicitado, gratuitamente, pelo e-mail biblioteca@palmares.gov.br
Cidinha, além de divulgar os livros no seu blog, também publica crônicas e textos opinativos sobre o papel protagonizado pelo negro na televisão e sobre a espetacularização da mídia. “Doze meninos e homens negros executados pela polícia baiana com tiros na nuca. Havia marcas de tortura como braços quebrados e olhos afundados, mas poderia ser obra da polícia paulista, alagoana, carioca, pernambucana. São práticas disseminadas pelo país.”, enfatiza a autora em trecho do texto Quando a execução sumária é legitimada como gol de placa no campeonato de extermínio da população negra, publicado em seu blog.
Leitora e, por ventura, influenciada por grandes nomes da literatura afro como Paulina Chizane, a primeira mulher Moçambicana a publicar um romance, Ana Maria Gonçalves, brasileira que conquistou o prêmio Casa de las Américas pelo o romance Um defeito de Cor, em 2006, e Elisa Lucinda, já conhecida por ser atriz global e vencedora do Troféu Raça Negra em 2010, Cidinha da Silva é mulher negra que aborda o racismo em seu trabalho.
Ela admite ter legitimidade para abordar o assunto, mas, para ela, sua cor não garante que o seu texto seja bom e também não define sua literatura. “Eu não acho que existem coisas sobre as quais só eu possa falar, se pensar assim, limito os meus falares, só poderei falar do que vivi e me interessa muito fabular na produção literária, inventar a linguagem, as paisagens, as personagens, a trama. Todo mundo, como eu, tem o direito de escrever sobre o que quiser”.
Como escritora e prosadora, usa sua liberdade para imaginar, criar, reinventar e quebrar diversos paradigmas da literatura afro brasileira. “Existe um vício nefasto (encarnado também por muitos colegas) de reduzir a literatura negra à autobiografia. Ela pode ser um aspecto, para alguns colegas, preponderante, mas não é tudo, não é o todo, tampouco pode ser imposta a quem quer experimentar outros caminhos”. Posicionada politicamente e engajada nas causas em que acredita, desenvolveu projetos de ações afirmativas de educação, de juventude e de relações comunitárias. Fundou o Instituto Kuanza e foi ativista de combate ao racismo e ao sexíssismo na ONG chamada Geledés-Instituto da Mulher Negra.
O escritor negro Machado de Assis foi o fundador da Academia Brasileira de Letras e até hoje é considerado o maior nome da literatura brasileira. Ainda assim, são poucos [PCF1] os negros que ocuparam um lugar na academia. Cidinha da Silva junto com escritores como Joel Rufino Santos, Elisa Lucinda, Conceição Evaristo, Paulo Lins e Ana Maria Gonçalves são protagonistas reais da literatura negra no Brasil, não resumindo a literatura à própria causa, mas expandindo o espaço que há muito tempo foi negado ao negro; de contar histórias diversas e de serem, conhecidos, reconhecidos e prestigiados quando o faz bem. Para Cidinha, o futuro do negro no Brasil pode ser descrito como a letra do samba no carnaval. “É tudo nosso, nada deles.”
Leia na íntegra a entrevista com Cidinha da Silva.
Me conte um pouco da sua trajetória e quando decidiu se tornar escritora?
Sempre pratiquei a escrita criativa desde criança e nasceu nessa época também o desejo de ser escritora. Eu lia muito e queria criar minhas próprias histórias. A decisão de publicar literatura ocorreu em 2006. Antes de publicar literatura, escrevi e publiquei seis dezenas de ensaios e artigos abordando as relações raciais e de gênero em diálogo com educação e juventude. Fui também ativista de combate ao racismo e ao sexíssismo numa ONG chamada Geledés-Instituto da Mulher Negra, em São Paulo.
Escrever no blog foi sua porta de entrada para o livro ou vice-e-versa? Para você qual a principal diferença entre os dois meios?
Não, eu publiquei livros primeiro e depois fiz o blog. Os livros é que me levaram ao blog como uma estratégia de divulgação do meu trabalho em outro suporte que não o livro. A diferença central entre os textos dos dois suportes é que, no blog, a escrita é mais imediata e menos trabalhada que a escrita dos livros, na qual me detenho mais.
Quem são seus autores preferidos ou inspiradores literários?
Os preferidos e os inspiradores nem sempre convergem, mas vamos lá, direi alguns/as que gosto muito: Paulina Chiziane, Ana Maria Gonçalves, Elisa Lucinda, Edimilson de Almeida Pereira, Fábio Mandingo, entre outros.
Para você qual é o espaço para literatura afrodescendente hoje no Brasil?
É uma grande vereda a ser desbravada, há muito por consolidar, por conquistar, seja no aspecto da criação, da representação e da recepção (de público e crítica).
A cada trabalho seu, existe um foco, um público diferente, mas o seu objetivo com o seu trabalho é o mesmo?
Quero escrever mais e melhor e publicar mais também, sempre pautada por mim mesma, pelo meu desejo de escrever sobre temas múltiplos e no formato que a própria escrita exige (dramaturgia, conto, crônica, romance, textos para crianças, etc).
Ao abordar as relações sociais tendo como o foco o protagonismo do negro nas novelas, na mídia e na sociedade, qual o papel que o negro representa?
De um modo geral, são facetas e nuances dos estereótipos que subordinam as pessoas negras em sociedades racializadas como a brasileira.
Qual o seu posicionamento sobre assuntos polêmicos como cotas raciais ou universidades?
Não creio que exista polêmica, há sim, posições antagônicas e conflito de interesses. Existem as pessoas que defendem as ações afirmativas (as cotas são uma modalidade de ação afirmativa) como estratégia de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial. Existem outras pessoas que se recusam a entender a operacionalidade do racismo, apegando-se à discriminação e às desigualdades sociais em detrimento da discriminação racial e suas desigualdades correlatas. E, por fim, existem pessoas de má fé, apegadas aos privilégios engendrados e consolidados pela branquitude no Brasil. Insistir na suposta polêmica é desviar o foco da Casa grande que insiste em subalternizar dos descendentes dos antigos habitantes das senzalas.
Fale um pouco da sua produção de literatura infantil. Como surgiu o seu interesse em escrever para as crianças, o que você busca passar para elas?
O interesse surgiu quando meu primeiro livro para adultos estava sendo lido por uma sobrinha de 6 anos que então se alfabetizava. Ao mesmo tempo que aquilo me emocionava, também incomodava porque não era um livro adequado a ela. Eu, então, buscava explicar as inadequações à pequena, que me perguntou: “E quando você vai fazer livros para crianças?” Esse foi o mote inspirador. Quanto à temática escolhida, eu quero discutir com as crianças todos os temas (assim são meus livros) e meu desafio é buscar a linguagem adequada, criativa e efetiva para fazê-lo.
Hoje o seu nome tem grande força quando se fala de literatura afrodescendente. Quais outros nomes que você destaca?
São muitos e não sou crítica literária. Coincidentemente os que mencionei acima como “preferidos” e/ou “inspiradores” são todos escritoras e escritores negros que considero excelentes.
Um branco poderia falar tão bem da realidade do negro atual no Brasil como você ou ganha força na sua voz?
Eu tenho legitimidade para falar, mas isso, apenas, não garante que meu texto seja bom ou tenha literalidade. Outros autores que não negros podem não ter tanta legitimidade quanto eu, mas podem, seguramente, ter um texto muito melhor do que o meu. Eu não acho que existem coisas sobre as quais só eu possa falar, se pensar assim, limito meus falares, só poderei falar do que vivi e me interessa muito fabular na produção literária, inventar a linguagem, as paisagens, as personagens, a trama e todo mundo, como eu, tem o direito de escrever sobre o que quiser). Existe um vício nefasto (encarnado também por muitos colegas) de reduzir a literatura negra à autobiografia. Ela pode ser um aspecto, para alguns colegas, preponderante, mas não é tudo, não é o todo, tampouco pode ser imposta a quem quer experimentar outros caminhos.
Me fale mais da sua obra, da sua linguagem, do seu estilo de escrita, da sua estética. Como você faz suas escolhas?
Escrever é um ato de coragem, a gente se desnuda na criação e se desvela para criar. Procurar a forma mais efetiva de dizer é um desafio constante e essa forma pode ser afetiva, irônica, racional, amorosa, irada, cínica, dúbia… dependerá do tema, da situação. A escrita para crianças tem o desafio adicional de falar sobre todos os temas, incluídos os mais ácidos, numa linguagem que as crianças decodifiquem e que lhes dê prazer ao ler.
A que você atribui à aceitação dos seus livros e ao fato de ter publicado o oitavo? Como é a interação com seus leitores? Com as redes sociais o contato se tornou mais fácil ou existe algum bloqueio?
Se existe mesmo esse sucesso que você menciona, numa paráfrase a Muricy Ramalho, renomado técnico de futebol, eu o atribuiria ao trabalho. Eu trabalho muito e trabalho bem, algum resultado positivo, para além da minha satisfação com o próprio trabalho, isso deve gerar. Eu costumo conversar com leitores ao vivo, quando me procuram em palestras, lançamentos ou outras situações públicas. Eventualmente, alguns enviam mensagens privadas e costumo responder. Entretanto, não tenho o hábito de interagir nos debates sobre os meus textos na web. Procuro ler tudo o que consigo, mas se for entrar na dinâmica dos debates, muitas vezes infrutíferos, sacrifico meu precioso tempo da escrita. Não percebo bloqueios ou dificuldades, não.
Como você vê a importância do seu trabalho, da sua crítica social, da sua contribuição para sociedade?
Eu me vejo como uma escritora posicionada politicamente, portadora de aguçado senso crítico e perseguidora de uma linguagem que me deixe feliz, realizada e satisfeita. O que deriva disso depende do público-leitor e de seu diálogo com o que escrevo. Creio que, se houver importância no que escrevo, quem me lê está mais apto a avaliar do que eu.
Quem é a Cidinha da Silva por traz dos livros? Além de escrever como você distribui o seu tempo, o que lhe dar prazer?
Eu estudo muito, leio menos do que gostaria e ocupo grande parte do meu tempo trabalhando em coisas que geram renda e não são literatura. Recentemente, por exemplo, encerrei um período como gestora pública de cultura e inicio outro como doutoranda em difusão do conhecimento na Universidade Federal da Bahia. Quanto às coisas que me dão prazer, gosto muito de desfrutar da arte, de um modo geral, de viajar e conhecer novos lugares e também de estar com as pessoas que gosto.
O que você deseja para o futuro? Como você vê o negro no futuro no nosso país?
Pessoalmente, desejo mais tempo para escrever e realizar meu projeto literário. Quanto ao futuro do negro no Brasil, é como a letra do pagode baiano que arrebentou no carnaval: “é tudo nosso, nada deles!”
Deseja comentar ou acrescentar algo que eu não perguntei?
Sim, recentemente organizei uma publicação muito importante que se chama “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil”. A obra apresenta diagnóstico robusto da realidade sociocultural do setor do livro, leitura, literatura e bibliotecas (LLLB), transversalizado pelas dimensões de raça e africanidades. Traz a público o pensamento de 48 mulheres e homens, predominantemente negros (90%, 43 autores) sobre o tema do LLLB no Brasil, contemplando dimensões preciosas e múltiplas que visam produzir conhecimento qualitativo, consubstanciado em argumentos potentes sobre as relações raciais e de africanidades, visando alimentar as políticas públicas do LLLB e considerando os desafios da encruzilhada do combate ao racismo e da formação do leitor-literário. O livro tem distribuição gratuita, foi publicado pela Fundação Cultural Palmares e as pessoas interessadas podem solicitá-lo pelo e-mail biblioteca@palmares.gov.br