Em uma única sala, 50 obras em aquarela que sinalizam a diversidade e a riqueza do candomblé, em suas tradições jejê, ketu e angola. (Foto: Moisés Corrêa)
Orixás em aquarelas. Em “As cores do sagrado”, exposição com obras do artista Carybé, que ocupou uma das Galerias da Caixa Cultural Rio de Janeiro entre 29 de outubro e 20 de dezembro de 2015, pôde se ter contato com desenhos que expressam de uma forma singular as divindades do candomblé. Uma coisa é certa: as cores e pluralidade de significados e símbolos são carregadas pelo público, grudadas na retina, quando se deixa a sala, de tão forte que é a experiência.
Carybé nasceu na Argentina, morou no Rio de Janeiro, mas aos 27 anos de idade foi quando pisou pela primeira vez nas terras da Bahia de Todos os Santos. Desde então, não quis mais assentar sítio em outro lugar. O ano? 1950. Até a sua morte, nos anos 1980, viveu, conviveu e se deixou tomar por experiências da cidade de São Salvador, inclusive pelas práticas religiosas que ali eram seguidas. Contemporâneo do fotógrafo Pierre Verger e do escritor Jorge Amado – inclusive ligado a eles por rede de amizade -, o artista logo descobriu as complexidades e atrações do candomblé, vividas pela sua trajetória e participação no Ilê Axé Opô Afonjá, famoso terreiro de candomblé em Salvador.
Em um cubo branco a expografia se debruçou na cor do orixá Oxalá para que as obras de Carybé pudessem reverberar no ambiente. Em uma única sala, 50 obras em aquarela que sinalizam a diversidade e a riqueza do candomblé, em suas tradições jejê, ketu e angola. Os traços pretos em nanquim reforçam as bordas das vestimentas dos orixás, as linhas dos corpos e de suas ferramentas. Os instrumentos de cada divindade parecem brilhar na iluminação proposta pela curadoria. As cores vibram e as heranças africanas tomam conta de todo o percurso dentre as obras.
Não se trata de uma exposição que se leva muito tempo para ver. Porém, com muito cuidado, é necessário se atentar aos detalhes. As divindades são especialmente bem definidas em termos de traços artísticos, além do compromisso religioso de retratação daquilo que se viu e viveu dentro das casas de candomblé da Bahia. É quando as aquarelas de Carybé se tornam documentos. Não são só importantes instrumentos da representação da herança e tradição negra no Brasil, mas também podem ser vistos como instrumentos político-sociais de difusão de uma religiosidade que é bastante marginalizada na sociedade vigente.
As 50 aquarelas de Carybé são um exercício de memória ao preconceito, ao racismo e à exclusão que se deve combater hoje na sociedade vigente. (Foto: Moisés Corrêa)
A relevância da exposição está em uma tríade que pode ser sintetizada em: “documentação”, “arte” e “política”. Em seu primeiro viés, a representação feita dos orixás é uma forma de documentar aquilo que se pode ter tomado ciência a partir do plano empírico. O candomblé é uma religião que precisa ser vivenciada para que se possa tomar conhecimento dos seus ritos. É inegável que a tradição oral dos diferentes povos da África Ocidental, no caso da Bahia, fez com que esta religião tivesse em sua base a oralidade, a palavra e a fala. Por isso, a documentação desses registros, em arte, é de suma importância para que essas imagens não se percam e possam servir de exemplos e registros para aqueles que admiram e estudam as heranças e a contemporaneidade afro-brasileira.
Em um segundo ponto, apesar de Carybé ter sido um artista estudado em Artes academicamente, enquanto aluno da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro por alguns anos; nestas obras a simplicidade e os traços objetivos demarcam os orixás de maneira delicada, respeitosa e viva. A aquarela é a técnica. É quando a arte diz sobre o seu objeto. Por esse olhar, Carybé parece ter privilegiado a imersão nos coloridos, os diferentes lugares de culto, mostrando a simplicidade e a coletividade de uma religião que se expressa justamente pela exuberância do uso da palheta de cores em sua indumentária, nos ritos, nas práticas, inclusive em suas oferendas e realizações gastronômicas.
Em um terceiro viés, é inegável a importância política dessa exposição. A apresentação dos orixás não é apenas uma forma de ilustração artística, quando se fala de uma religião que provém de heranças africanas, que se constituiu no Brasil enquanto espaço sócio-cultural de resistência e questionamentos ao status quo. As 50 aquarelas de Carybé são um exercício de memória ao preconceito, ao racismo e à exclusão que se deve combater hoje na sociedade vigente.
O conhecimento que se é legado a partir das obras é imenso. Entre as legendas e as imagens existem inúmeros símbolos e palavras que são desconhecidos pela maioria da população. Levá-los aos olhos dos brasileiros é trazer a margem ao centro, discutir e marcar posição com relação aos assuntos que ainda não foram superados que servem de impulso para a construção de uma sociedade brasileira mais democrática, igualitária e justa; onde as tradições afro-brasileiras não sejam perseguidas e não fiquem reféns à destruição, ao apaziguamento, ao embranquecimento e à sujeição ao discurso hegemônico.
Entrar na galeria se tratou de uma experiência única, em questões de conhecimento, tradição, religiosidade e fundamentos da cultura afro-brasileira. É fulcral que as suas expressões extrapolem o espaço da arte e possam servir de reflexão e contribuição para a construção de um novo lugar sócio-cultural, em que haja mais respeito e igualdade racial.