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África do Sul

Cartas de empoderamento: o movimento LGBT negro na África do Sul contra o apartheid
por João Terra

 

Simon Nkoli (foto: Divulgação)

 

 

O reconhecimento da cidadania das minorias sexuais e de gênero na África do Sul foi fruto de um processo de lutas e reivindicações de um movimento combativo, que buscou inserir os direitos da população LGBT em uma perspectiva mais ampla de justiça social na transição do apartheid para um regime democrático. Essa compreensão abriu espaço para a consolidação de uma das legislações mais progressistas do mundo para a população LGBT: a Constituição do país foi a primeira do mundo a proibir a discriminação fundada em sexo, gênero e orientação sexual.

 

 

Por trás dessas grandes conquistas, o ativismo das minorias sexuais se apoiou em uma rede de empoderamento. Exposta no Museu do Apartheid, em Joanesburgo, está a caixa postal de Thokozile Khumalo, conhecida popularmente como MaThoko.  Inúmeras cartas foram enviadas por pessoas LGBTs sul-africanas ao longo da década de 80 para a caixa postal de MaThoko, em busca de apoio frente à estigmatização. Dona de uma taverna na pequena cidade de KwaThema, nas proximidades de Joanesburgo, ela começou a abrigar em sua casa simples, de quatro cômodos, jovens LGBTs expulsas de suas casas e do sistema escolar, em função da discriminação. Embora ela mesma fosse heterossexual, tinha um sobrinho gay, o que fez com que se compadecesse da situação de jovens marginalizados pelo sistema heterossexista.

 

 

O regime do apartheid, na década de 80, passava por um momento de endurecimento da repressão estatal. Nesse contexto, os movimentos de resistência também eclodiram com força, pavimentando o caminho para a transição democrática na década de 90. O movimento da gay liberation, até então, era predominantemente formado por homens brancos de classe média, não se vinculando à luta contra o racismo institucional. Tal situação viria a se transformar com a fundação da Gay and Lesbian Organisation of Witwatersrand (GLOW), o primeiro movimento pelas minorias sexuais a se envolver na luta contra o apartheid, pelo entendimento de que as lutas contra o racismo, o machismo e o heterossexismo estão interconectadas.

 

 

Uma das lideranças de tal organização foi Simon Nkoli, com um histórico de combate ao regime no movimento estudantil sul-africano. Após sua detenção em um protesto na cidade de Sebokeng, a orientação sexual de Nkoli tornou-se questão polêmica, pois alguns de seus companheiros defenderam que ele fosse julgado separadamente. Nkoli reivindicou seu lugar e conseguiu convencê-los da importância de considerar essas formas de discriminação tão perniciosas quanto o racismo, tornando-se um homem gay negro visível. Também recebendo centenas de cartas de apoio e solidariedade no cárcere, aliou-se a outros ativistas para formar um movimento que buscasse a superação não somente de um sistema de opressão, contemplando a população negra e LGBT.

 

 

 

MaThoko-House (Foto: Divulgação)

 

 

Em meio a essa efervescência, a casa de MaThoko se transformou em uma das sedes da GLOW. Era, antes de tudo, um lugar de refúgio, de apoio e de cuidado, em que jovens pessoas LGBTs encontravam acolhimento, promovendo um senso de pertencimento e autoestima que turbinaria as lutas pelo respeito à diversidade de orientações sexuais e diversidade de gênero. Ainda que sua casa tenha sido demolida, a caixa postal de MaThoko representa a rede de comunicação que proporcionou o empoderamento de uma comunidade LGBT sul-africana, no contexto de um regime autoritário e segregacionista.

 

 

O nome de MaThoko também é lembrado pela editora do Gay and Lesbian Memory in Action, centro de promoção da cultura LGBT na África do Sul. A editora produz títulos com o objetivo de promover a educação e conscientização em direitos humanos, fomentando o respeito à diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero. O símbolo escolhido para figurar como logomarca da editora é justamente a caixa postal de MaThoko.

 

 

A circulação de correspondências permitiu o contato das minorias sexuais em um período durante o qual as homossexualidades e identidades de gênero consideradas desviantes eram criminalizadas. Essa expressão do movimento LGBT, combatendo também a marginalização racial e de classe, se massificou e teve respaldo mais amplo, embasando os significativos avanços legais na consolidação do regime democrático.

 

 

 

MaThoko Post Box (Foto: Divulgação)

 

 

Contudo, essas conquistas não foram capazes de erradicar completamente a violência no país.  Atualmente, a comunidade LGBT continua resistindo tanto na África do Sul como em outros países africanos. A Internet tornou-se um meio de comunicação privilegiado para o apoio mútuo e a articulação política, seja para buscar a conquista de novos direitos, seja para garantir o cumprimento dos já previstos nas legislações. A caixa postal de MaThoko permanece como símbolo dessa rede em expansão, tendo figurado nos primódios do movimento LGBT negro na África do Sul, quando se desencadearam lutas pelo respeito aos direitos humanos e pela democracia.