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Brasil / África

Carolina Maria de Jesus: o retrato de uma sociedade desigual
por Gisele Falcari

 

 

Explosiva, corajosa, rebelde, ousada. Esses são adjetivos que ajudam a descrever Carolina Maria de Jesus, escritora brasileira que, com uma aguçada percepção dos mecanismos de exploração, retratou as angústias que os moradores de favela sentem: ”Quando querem se livrar dos papéis e das latas velhas, mandam para o lixão, quando querem se livrar das pessoas que incomodam, mandam para a favela, o quarto de despejo da humanidade”. Por meio de uma escrita autorreferencial, Carolina se define como mulher, negra e pobre, instaurando, no campo literário, a voz feminina do oprimido que denuncia e luta contra a desigualdade social e o preconceito racial.

 

 

Nascida em Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus saiu de lá quando sua mãe morreu, em 1947, e, depois de passar por algumas cidades do interior de São Paulo, foi viver na favela do Canindé, hoje já extinta, na capital paulista. Cuidava de seus três filhos sozinha – por decisão própria, optou por não ter marido – vivendo de recolher papéis, ferros e outros materiais recicláveis nas ruas da cidade. Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, professor do Departamento de História da USP e um dos autores de Cinderela Negra – a Saga de Carolina Maria de Jesus, ela, “incompatibilizada com as regras de trabalho em casas de família, quis alcançar voos próprios e passou a ser catadora de papel nas ruas paulistas”. Era ela uma mulher que não aceitava os padrões impostos.

 

 

Semianalfabeta (frequentou apenas os dois anos iniciais da escola), Carolina de Jesus se interessava, especialmente, pelos papéis que recolhia (livros, jornais, revistas e cadernos), dando, a eles, um destino diferente dos demais materiais: separava-os para suas leituras e para registrar sua vida em forma de um diário. “22 de julho de 1955 … Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo! Virei na rua Frei Antônio Galvão. Quase não tinha papel (…) Enchi dois sacos na rua Alfredo Maia. Levei um até ao ponto e depois voltei para levar outro. Percorri outras ruas. Conversei um pouco com o senhor João Pedro.”

 

 

Bitita, apelido que recebeu na infância, foi ‘descoberta’ e revelada por Audálio Dantas que, na época, era um jovem repórter interessado pelo problema da favela que começava a aparecer às margens do rio Tietê. O jornalista estava passando o dia na favela do Canindé a fim de retratar a precária situação dos moradores quando a conheceu e leu trechos de seu diário. Importante ressaltar que, naquele contexto histórico, os jornalistas adquiriam funções importantes como documentadores das transformações nacionais. O favelamento do antigo campo do Canindé, por exemplo, deu-se por sua localização, naquela época fora da cidade, pela migração do Nordeste motivada pela seca de 1958 e pela criação de empregos gerados a partir do projeto de multinacionalização do país.

 

 

Diante disso, aqueles textos, escritos por alguém que vivia dentro daquelas mazelas, foi um prato cheio para Dantas que conseguiu sua publicação pela editora Francisco Alves.

 

 

 

 

Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960) tornou-se um dos livros mais lidos nas décadas de 1960 e 1970. Foi traduzido para treze idiomas e mais de quarenta países. O nome da obra foi inspirado numa fala da própria escritora: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de ‘viludo’, almofadas de ‘sitim’. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. Sua experiência de favelada expunha ao coletivo uma “chaga feia” que provava as falhas do projeto de desenvolvimento econômico iniciado pelo governo federal em nome da modernização do país.

 

Além dessa obra, a autora publicou mais dois diários: Casa de Alvenaria – diário de uma ex-favelada (1961) e Diário de Bitita (1986); um romance: Pedaços da Fome (1963); uma coletânea de poemas: Antologia Pessoal (1996) e uma compilação de pensamentos intitulada Provérbios (1965). Morreu em 1977, com 62 anos, e deixou uma boa parte de sua produção – poemas, contos e escritos diversos – ainda não publicada.

 

 

A pesquisadora Fernanda Rodrigues Miranda, em seu artigo O campo Literário afro-brasileiro e a recepção de Carolina Maria de Jesus, afirma que a escritora pode ter sido a primeira autora afro-brasileira a incluir, em uma obra literária, a experiência histórica da pobreza e da desigualdade racial, não apenas pela temática da sobrevivência urbana marginal, mas, principalmente, pela formalização estética dessa temática. Carolina de Jesus se utiliza de uma narrativa enxuta, direta e seca, somada a ironias, antíteses, paradoxos e metáforas, e constrói um real específico, que é a vida dos favelados, de uma forma dramática e lírica: “A noite está tépida. O céu já está salpicando de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”.

 

 

A obra de Carolina Maria de Jesus é um referencial importante para os estudos culturais e literários por ela ser uma representante de nossa literatura periférica e afro-brasileira. Foi, e continua sendo, também, um exemplo de resistência para autores que vieram depois, como Paulo Lins, de Cidade de Deus (1997), e Ferréz, de Capão Pecado (2000). Uma obra atualíssima, visto que sua temática apresenta problemas existentes até hoje nas grandes cidades.