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Brasil / África

Arte para Exu
por Rafael Gonzaga

 

Foto: Raquel Trindade – A Kabinda: Laroyê Exu (detalhe), 2015, Acrílica sobre tela, 80 x 80 cm, Bienal de Arte Naïf de Piracicaba, 2016

 

 

Que Exu me conceda o dom da palavra. Ele é um dos Orixás mais incompreendidos dentre todos os outros. Sua iwà (personalidade em Iorubá) é marcada pelo prazer em criar confusões entre amigos, provocar acidentes, pregar peças em mercadores e mesmo nos outros Orixás. Ele também é grosseiro, astucioso e indecente. Segundo o fotógrafo e etnólogo Pierre Fatumbi Verger, quando missionários cristãos aportaram na costa ocidental da África e se depararam com essas características contadas nos oríkì e nos provérbios para Exu, rapidamente o associaram à figura do diabo. E até hoje essa associação perdura nas culturas cristãs, especialmente no Brasil.

 

 

A história mais famosa, com muitas variações, e que mostra o caráter fanfarrão de Exu diz respeito a uma ocasião em que ele semeou a discórdia entre dois amigos que trabalhavam em campos vizinhos. Exu vestiu um chapéu vermelho de um lado e branco de outro e caminhou numa estrada que dividia os dois campos. Depois de algum tempo, um dos amigos comentou sobre o viajante de chapéu vermelho; o outro homem retrucou que o chapéu era, na verdade, branco, mas o primeiro voltou a insistir que era vermelho, mantendo sua afirmação de forma ríspida; o segundo também permaneceu firme em sua convicção de que o chapéu era branco, sustentando-os com ardor e, logo depois, com cólera. Os dois amigos acabaram entrando em luta corpo a corpo e matando um ao outro.

 

 

No Brasil, Exu é conhecido como o “Compadre” ou o “Homem das Encruzilhadas”, pois é nesses lugares que se depositam as oferendas que lhe são destinadas. O domínio de Exu sobre as encruzilhadas é uma história que mostra o quanto ele pode ser visto a partir de múltiplas perspectivas. O episódio em que ele foi designado como senhor das encruzilhadas revela o importante papel de Exu no cosmos Iorubá, além de também nos dar indícios das tradições que giram em torno da formação dos artistas daquela cultura.

 

 

Entre os Iorubás, a formação do onísé oná (artista/artesão) acontece em oficinas em que o aspirante a artesão observava, durante anos, o trabalho de um mestre. Esse ensinamento não envolvia apenas aspectos técnicos para esculpir estatuetas e ou máscaras, mas também o contato com os conhecimentos sagrados, era importante conhecer, por exemplo, a ìwà (natureza essencial) de Ogum para aprender a trabalhar com as ferramentas necessárias e os metais, a iwà de Exu para compreender as formas de comunicação entre Orum e Aiyê, isto é, entre os homens e as divindades. O aprendiz estudava observando o mestre a trabalhar, assimilando os motivos iorubás, bem como as convenções iconográficas. O aspirante a artesão só ganhava o status de onísé oná após demonstrar possuir ìmò (experiência e conhecimento), ìmòóse (proficiência técnica) e ojú onà (simplesmente “olhos para arte”).

 

 

Voltando à história de como Exu tomou domínio sobre as encruzilhadas, conta o oríkì  que Exu não tinha propriedade, não tinha riqueza e nem rio, muito menos profissão ou um sentido para a vida. Mas um dia, Exu passou a frequentar a casa de Oxalá, quando este modelava os corpos dos homens e das mulheres. Exu ia todos os dias, e enquanto outros seres iam a casa de Oxalá, apreciavam suas obras, traziam oferendas e partiam, Exu continuava lá, observando atentamente o trabalho do mestre. Exu não perguntava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo. Após 16 anos ajudando e observando, Oxalá disse para ele postar-se na encruzilhada por onde passavam todos os que vinham à sua casa. Oxalá pediu a Exu que não deixasse passar quem não lhe trouxesse uma oferenda. E ele fez bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo: quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exu. Armado de um poderoso porrete chamado ogó – às vezes em formas fálicas -, Exu afastava os indesejáveis. Exu fez da encruzilhada a sua casa e ninguém mais podia passar por ali sem lhe pagar um tributo. Conto disponível no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.

 

 

 

Foto: O cosmos Ioruba (Igbá)

 
 

Podemos entender a encruzilhada, domínio de Exu, como o entre-lugar de Òrun-Àiyé. Os iorubás concebem o cosmos como uma cabaça fechada (Igbá) com duas metades, formando Orum-Aiê respectivamente; Òrun é o céu masculino, o reino invisível. Àiyé é a mãe terra e, também, as águas primordiais em que o mundo físico fora criado (Figura 1). Entre as duas dimensões está Exu, cobrando passagem. Dessa forma, ao invés de compararmos essa entidade com o diabo – já que nossas referências e educação ocidental nos impulsiona para esse tipo de comparação – poderíamos aproximar Exu muito mais do deus Hermes, aquele que representa o mensageiro entre os homens e os deuses gregos, e mesmo Dionísio, o deus das incertezas e inconstâncias. Assim, Exu é também o senhor da passagem entre o reino invisível dos Orixás e egunguns (espíritos dos ancestrais) e o mundo físico dos homens. Desta forma, ele é também o orixá mensageiro, aquele que permite que nossas demandas sejam ouvidas e atendidas por todos os outros Orixás e que as ações dos mesmos cheguem até nós.

 

 

Assim, Exu é o mais humano dos Orixás, justamente por não se enquadrar em um arquétipo fixo, ele bem representa a crença Iorubá de que “A ì í gba’re k’á má à gba’bi”, isto é, que o mal e o bom caminham juntos. É que Exu é um Orixá múltiplo e de aspectos contraditórios. O oposto de Exu, na gramática iorubá, é Orunmilá, associado às tábuas de adivinhação de Ifá. Enquanto este último estaria ligado aos caminhos da adivinhação do futuro, Exu seria aquele orixá das incertezas e das surpresas da vida – embora em alguns oriquis, Exu seja também companheiro de Orunmilá.

 

 

Porém, é um erro pensar em Exu a partir de uma lógica binária judaico-cristã. Segundo o livro sagrado de Ifá, o Santíssimo Sábio, antes de existir o cosmos só existia a escuridão total e Exu-Elegbá já morava lá. Olódùmarè (o pulso essencial), que morava em um núcleo de luz, ar e água, decidiu fazer o tempo caminhar através de um número infinito de vibrações, em seguida, Olódùmarè assoprou com força transformando as partículas do seu hálito em estrelas e outros astros. Desde aquele momento, Exu empreendeu esforços para ajudar a Olódùmarè a criar o mundo.

 

 

Exu é, sobretudo, o Orixá que estabelece a ponte entre os homens e as outras divindades iorubás. Os monumentos da cultura de tradições orais, isto é, os oriquis que contam as histórias dos Orixás mostram Exu em suas mil facetas. Entre elas são:

 

 

“Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro”

“É numa peneira que ele transporta o azeite que compra no mercado; e o azeite não escorre dessa estranha vasilha.”

“Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. Se ele se zanga, pisa nessa pedra e ela põe-se a sangrar”

“Aborrecido, ele senta-se na pele de uma formiga.”

“Sentado, sua cabeça bate no teto; de pé, não atinge nem mesmo a altura do fogareiro.” (VERGER, 1981, p. 78)

 

 

A arte plástica iorubá pode ser definida como formas de oriquis visuais. Nesse breve ensaio, mostraremos a maneira como, através da arte, uma dessas facetas cantadas em oriquis, a do orixá mensageiro, aparece de forma plástica. O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) conserva em seu acervo uma impressionante coleção que fora doada recentemente, trata-se da coleção Robilotta com 49 peças de arte Iorubá. Entre as maravilhas que compõem essa coleção podemos encontrar uma pequena estatueta de Exu (Figura 2).

 

 

 

Foto: Estatueta de Exu. Coleção Robilotta, MASP.

 

 

A estatueta a Exu, do MASP, é um motivo popular entre os escultores iorubás (LAWAL, 2012, p. 37). Trata-se de um objeto utilizado em rituais e mostra Exu tocando um pífaro (fèrè), instrumento utilizado por caçadores para se comunicar uns com os outros e coordenar a caçada. Nesse sentido, o significado da flauta nessa obra dialoga com a importância de Exu como mensageiro entre homens, os espíritos ancestrais, orixás e Olódùmarè, pois ele coordenada e agrupa diferentes entidades entre Òrun e Àiyé.

 

 

Exu, em Iorubá (Èsù), é uma derivação do verbo “sù”, significando aquele que acrescenta, agrupa e soma. Em outras palavras, ele une os diferentes em um só corpo. Dessa maneira, Exu também é associado à forma esférica da ori (cabeça), pois, segundo a cosmovisão Iorubá, a cabeça também é o lugar que coordena as diferentes partes do corpo em uma só vontade. Como diz um antigo canto Iorubá: “É com a nossa cabeça que tomamos direção”. Vale dizer que a importância atribuída à cabeça, entre os Iorubás, também reflete nas esculturas, pois esta parte do corpo sempre recebe mais atenção por parte do artesão.

 

 

Como uma derivação da relação entre Exu e ori, entre os Iorubás, Exu também é conhecido como sónsó òbe, que significa “um tipo de faca afiada”. Essa relação pode ser testemunhada pela estatueta de Exu da coleção do MASP. Em sua cabeça, podemos observar um tipo de cabaça que se projeta, como uma crista afiada, para trás. A cabaça expressa os cabelos de Exu presos numa longa trança, que cai para trás e forma, em cima, uma crista que serviria para esconder a lâmina de uma faca que ele carregaria dentro de sua ori.

 

 

Para os iorubás, com efeito, a cabeça é a parte mais importante de uma pessoa. Ela é identificada como o local privilegiado da percepção, comunicação e identidade. Para eles, no entanto, a maior importância da cabeça se encontra no plano metafórico, pois não é a cabeça física que conta, pois essa não passa de uma proteção externa (orí òde), e sim a cabeça interior (orí inú) por onde entra o sopro vital (axé), que atravessa todos os seres vivos, determinando o destino e o caráter (ìwà) de cada pessoa.

 

 

O culto à cabeça foi uma prática comum no passado e, em algumas regiões rurais, ainda persiste entre os iorubás. Muitas pessoas dedicavam um altar para a cabeça interior, os quais eram chamados de ìborí e podiam ter a forma de um cone. Os iorubás armazenavam uma espécie de pó para adivinhação (ìyerosùn), além de uma porção de terra previamente encantada por meio de cantos e rituais. Ambas eram guardadas em pequenas bolsas de couro, adornadas fartamente com búzios (owó eyo), miçangas e sementes. O objetivo dos altares à ori inú era a de atrair boa sorte e proteção ao seu dono.

 

 

Como no exemplo da estatueta de Exu, o ìborí foi esculpido no formato de um bico de pássaro porque os iorubás acreditam que o sopro divino de Olódùmarè (èmí) entra no corpo humano, na origem da vida, através da ori e voa para fora, no momento da morte, como um pássaro. De tal modo, os iorubás acreditam que dotar a ìborí desse formato (que nós, ocidentais poderíamos chamar até mesmo de “aerodinâmico”), como uma crista, lembrando uma lâmina afiada, permite a Exu atravessar os obstáculos da vida como uma faca afiada que corta o caminho, ou o relâmpago que atravessa, com a cabeça, o tronco de uma árvore.

 

 

Outro oríkì nos ajuda a entender a importância da ori na cultura Iorubá:

É com a cabeça que o cachorro adentra na floresta

É com a cabeça que o relâmpago (Xangô) parte a árvore iroco em duas

É com a cabeça que o cervo suporta seus chifres

É com a cabeça que o peixe adentra nas profundezas

É com a nossa cabeça que tomamos direção

É como encontramos o caminho.

É com a cabeça que nós pensamos em coisas boas. (LAWAL, 2012)

 

 

Desta forma, assim como o porrete (ògo) permite a Exu se locomover centenas de quilômetros em poucas horas, a forma pela qual o artesão esculpiu a cabeça dessa estatueta também revela a natureza essencial da existência (ìwà) de Exu, que é a capacidade de existir no entre-lugar, isto é, no mundo dos espíritos (Òrun) e no dos homens (Àiyé). Entre os iorubás, que ao contrário do que se acreditou no Ocidente, sempre existiu uma forte consciência estética, a beleza (ewà) de um trabalho de arte, dá-se quando este trabalho alcança a ìwà do objeto expressado, seja uma divindade, pessoa ou qualquer coisa. Assim, a beleza dessa estatueta é que ela mostra que Exu desliza pela existência.

 

 

Exu é o guardião dos templos, das casas, das cidades e dos mercados, além de ser o mensageiro entre homens, os espíritos ancestrais e os orixás. Ele também tem o seu lado bom e, se ele é tratado com consideração age de forma favorável. Este texto é, na verdade, uma oferenda a Exu pela inspiração concedida!