e música em transe
Arte: Natan Aquino
Antes de abrir a porta para descer do carro, o som já tinha se dado ao luxo de entrar pela fresta da janela e sem pudor encantou os ouvidos de quem o escutava pela primeira vez. Não foi preciso perguntar onde estavam os músicos, os visitantes guiados pela melodia suave naturalmente a seguiram até o palco. As notas vinham de uma placa de madeira de quase 15 centímetros com chaves de metal acopladas formando o que parecia ser um piano de dedo.
O instrumento mágico é conhecido como Mbira no Zimbabwe, mas leva diferentes nomes por outros países da África ou por outros lugares em que corre o sangue africano, como no Brasil, onde é conhecido como kalimba ou quissange. De origem milenar, acredita-se que o instrumento é proveniente da região do que é hoje o Zimbabwe. E se não é, foi no país que a Mbira ganhou mais força, se tornando símbolo nacional da música tradicional e da contemporânea.
No momento, o grupo Mbira Dzenharira é um dos maiores representantes do gênero e são eles os responsáveis por embalar a noite do ainda perplexo grupo de visitantes e mais algumas dezenas de admiradores que seguem curtindo o som e dançando o estilo inovador dos músicos, que amplificaram o som tradicional, criando a mbira elétrica. No total são cinco integrantes, todos de cabelo rastah, vestidos com trajes largos de cores verde, amarelo e vermelho. De olhos fechados e performando movimentos intensos, juntos parecem estar vivendo uma catarse musical coletiva. E a plateia acompanha.
Ajustada para ressonar e para criar notas emocionais, a mbira mais do que um instrumento é um artefato espiritual, sendo utilizada como forma de comunicação com os antepassados na cultura tradicional africana. Tanto em cerimônias religiosas como em encontros sociais, o seu som é considerado sagrado, representando a conexão com os espíritos ancestrais através da música. Para enfatizar a propriedade espiritual, destaca-se ainda a sua característica de polirritmia (que ajuda no processo de transe): a mbira não costuma ser tocada sozinha, sendo sempre acompanhada por outros instrumentos, vocais ou outras mbiras.
Ryan Groves, um dos espectadores, está ali também para colher material para a sua dissertação de Phd sobre a música popular do Zimbabwe. Para ele, na história do país, a mbira além de um mecanismo para entender a formação da identidade social foi e é um indicador de conscientização política. O instrumento teve um importante papel no processo de luta e resistência da história local, conhecido como Chimurenga, e hibridizada com o RockNRoll e o jazz criou um dos estilos mais importantes na história do Zimbabwe: a música Chimurenga, a música da resistência.
Tendai, o vocalista do grupo da noite, parece ainda estar em transe depois da apresentação. Solta com convicção todas as palavras de sua boca e depois ri suave, no fim de cada pensamento. Ele conta que a mbira traz com si, no seu envolvente som, a história de como a sociedade no Zimbabwe se formou e como a cultura se auto identifica. E começando a frase em tom sério, o músico conclui: “Já a espiritualidade do som depende do indivíduo. Mas cuidado, com a exposição certa, a música pode te possuir”. Faz uma pausa de longos segundos e abre um sorriso seguido de uma gargalhada que expõe doces rugas ao redor da boca, de alguém que cantou e riu muito nos últimos sessenta anos.
Confira o som do grupo Mbira Dzenharira: