um movimento para a descentralização da arte
Arte: Natan Aquino
Às nove horas de uma manhã de sábado, concentrados em frente a um dos muitos institutos culturais da capital de Burkina Faso, Ouagadougou, estão presentes bonecos gigantes perambulando de cá e de lá, palhaços animando o público, malabaristas em cima de muros e sobre as estátuas das ruas, músicos e dançarinos empolgados e uma acalorada escola de bateria formada exclusivamente por crianças. Estão todos aquecidos e preparados para sair pelas ruas da cidade avisando os cidadãos sobre o início de uma temporada de arte de rua. É a estreia da quinta edição do festival nacional Rendez Vous Chez Nous, um evento que, juntando artistas de todo o oeste da África, durante quinze dias viaja pelo país proporcionando uma bela agenda cultural gratuita. A proposta é democratização e descentralização da arte, que deve ser para todos e não apenas para quem pode pagar.
Organizado pela ACMUR, Associação de Artes, Palhaços, Marionetes e Músicas nas Ruas, o festival chega para difundir a ideia de que a arte deve estar nas ruas e deve pertencer à população. O diretor da iniciativa Boniface Kagambega, explica que em Burkina Faso a programação cultural se concentra há muito tempo dentro das salas e não chega ao público: “O objetivo é trazer a arte para o espaço público. Além das grandes cidades, é importante que os vilarejos desfrutem da cultura do próprio país, conheça seus artistas e possam interagir ao vivo com suas performances”. O festival que em sua primeira edição contava com 20 artistas, hoje, cinco anos depois, reúne mais de 400 grupos de arte na programação do evento, que além das grandes cidades, também percorre entre os menores vilarejos do país. “Por que o festival? Porque as ruas nos pertencem. É essa a realidade africana. O Rendez Vous Chez Nous é um projeto que funciona na África para a África”, reflete o diretor lembrando que o evento mais do que um encontro cultural é também um espetáculo sobre a democracia seja a social ou a artística.
Uma verdadeira plataforma de criação da África do Oeste, o festival recebe a cada ano estruturas nacionais e internacionais que juntos pensam um novo modelo cultural, trabalhando com o desenvolvimento e estruturação das artes de rua para a formação de artistas e programadores africanos, com difusão de espetáculos e com a concepção de uma rede social de profissionais locais. O festival já começou a colher seus frutos conquistando cada vez mais espaço no país: a cada ano são mais de 80 mil espectadores aproveitando os espetáculos que reúnem artistas da África, Ásia, Europa e América. Foi dentro da perspectiva de troca e compartilhamento, com os ateliês de formação entre profissionais de universos artísticos completamente diferentes e com o engajamento dos participantes com a causa de democratização e descentralização da arte, que nasceram dezenas de novos projetos, que inflam a cada ano a programação cultural oferecida pelo Rendez Vouz Chez Nous.
Companhias de circo e de marionete, grupos de dança, projeções de filme, acrobatas, contadores de história, intervenções ao estilo flash mob, instalações artística, exposições, dança de máscaras: tudo está incluso no grande carnaval que o festival promove em cada cidade, cada uma com data especial para a passeata de inauguração, em que os malabaristas desfilam em suas motos com looks apocalípticos feitos de pneus usados, os bonecos gigantes de Boromo balançam seus braços colossais acenando para o público, cavaleiros e caçadores brincam com bolas de papel improvisadas de cima de seus cavalos, acrobatas jogam, pra cima e pra baixo, arcos, malabares e pedaços de madeiras e, por fim, o trio elétrico leva os cantores que agitam a cidade com música e tambores chamando todos para a festa.
O objetivo é integrar a população nas festividades, garantindo que o evento seja feito pelo povo e para o povo. Para garantir a participação ativa das comunidades, em cada vila, uma equipe de mediação compostas por atores culturais do Rendez Vouz Chez Nous se encontra líderes tradicionais, anciãos, habitantes e comerciantes visando criar um dialogo direto com a população local, certificando que a cerimônia artística criada nas ruas seja entendida, aceitada e dividida. A ação também se estende para as escolas, com a proposta de realizar um trabalho com os alunos sobre educação cidadã. Para isso, o coletivo ACMUR promove nas instituições de ensino espetáculos educativos gratuitos com encontros reflexivos entre mediadores, professores e estudantes antes e depois de cada apresentação. Nos bairros de Ouagadougo, nas comunidades de Komsilga ou nos arredores de Bobo-Dialasso, com toda a animação proposta, os vilarejos da África acolhem as artes de rua.
Sempre com o objetivo de difundir a arte engajada, a cada edição do festival, um tema central é nomeado. Enquanto na edição de 2013, a proposta foi a discussão sobre o lugar e a função do artista na prevenção do conflito, a última edição de 2014 procurou refletir sobre o que é a cidadania e quem é o cidadão. Kagambega, lembrando que em Burkina Faso o voto não é obrigatório e que o país leva em sua cadeira presidencial o mesmo líder há 27 anos, instiga a participação política ativa da população. “Depois da versão do ano passado, pudemos analisar que aqui, os artistas não acreditam mais na possibilidade de uma democracia verdadeira e desistiram até mesmo de ir votar. Quisemos então questionar como a gente pode modificar a cidadania hoje e o que é ser um cidadão. É prestar atenção ao que acontece na sua cidade, no seu país, ou no mundo? Queremos discutir e analisar o que é preciso fazer para ser um cidadão. Temos ou não temos que ir votar? O que as pessoas estão esperando? Que alguém venha e decida por elas? A discussão aqui é sobre cidadania, mas também sobre democracia”, conclui o diretor do Festival Rendez Vouz Chez Nous, que com eficácia lembra a população de que a arte é para todos e a decisão sobre o futuro do país também.