da dança contemporânea
Arte: Natan Aquino
O público africano, sensível e receptivo a cena artística, tem dedicado cada vez mais atenção a uma forma de arte: a dança contemporânea. Em busca da descoberta de novos modelos de expressões coreográficas, técnicas e estilos de movimentos do corpo, a prática está ganhando força no continente. Juntando moderno e tradicional, ali nasceram estilos originais, que estão transformando o gênero e trazendo um novo significado à dança contemporânea, cada vez mais célebre no cenário internacional. “Motivados pelo mesmo amor ao movimento, diferentes cantos e culturas distantes do continente encontram na arte um fator de coesão social, uma oportunidade para alcançar a condição humana e um modo de redescobrir a África, dela se apropriando”, explica Irène Tassembédo, um dos maiores ícones atuais da área.
A diretora de Burkina Faso é uma das grandes figuras da coreografia moderna africana. Reconhecida por reinventar a linguagem da dança, ela já apresentou seu trabalho pelos quatro cantos do mundo e seu estilo multidisciplinar, aberto para diferentes técnicas e disciplinas da arte do espetáculo, traz no currículo uma dezena de prêmios internacionais. Em 1988, Irène fundou sua primeira companhia Ebony Company, mais tarde rebatizada como Compania Irène Tassembédo, que outra vez girou o mundo para apresentar o seu trabalho coreográfico original e inovador. Apaixonada pelo que faz e crédula do poder da dança como libertação e aproximação de culturas, a coreógrafa agora trabalha no incremento de projetos estruturais e culturais para desenvolver um alto nível de formação profissional permanente da dança no continente africano. Nesse contexto, apenas nos últimos anos criou e implementou com sucesso o Festival Internacional de Dança de Ouagadougou (FIDO) e a Escola de Dança Internacional Irène Tassembédo (EDIT).
Por protagonizar um importante papel nas lutas sociais, com seu esforço diário em busca da democratização da arte e da igualdade social através da cultura, a coreógrafa também é reconhecida em Burkina Faso como uma “grande femme” (grande mulher), nome dado a mulheres fortes e realizadoras. No seu mais recente espetáculo “Le Manteau” (O Casaco), Irène traz ao palco a discussão emblemática sobre a exploração do continente africano. Em 70 minutos, com seis dançarinos e três músicos, a peça é um hino à consciência coletiva, e traz durante a apresentação a narração dos dados:
“A esperança de vida no continente é de 54 anos de vida, na República Democrática do Congo as despesas com saúde não passam de 4 euros por habitante por ano, existem 35 milhões de pessoas com HIV no mundo, e 25 milhões estão África, 200 milhões de africanos sofrem de fome crônica e 33 bilhões de dólares foram gastos em armamento em dez países africanos.
Enquanto, no mesmo continente, foram produzidas, em um ano, 700 toneladas de ouro, 110 milhões de quilates de diamante e 2,3 milhões toneladas de cacau. Ainda 64 mil médicos formados na África trabalham na Europa e na América do Norte, 12 milhões de barris de petróleo são produzidos por dia, 45% da superfície da terra são utilizáveis para produção agrícola e 50% da população têm menos de 18 anos.
O teu casaco, Mãe África, está cada vez mais vermelho sangue, vermelho de raiva e vermelho de cólera”.
Sem remates, Irène escolhe deixar ao público a análise e interpretação dos dados. A resposta está na dança, no seu movimento forte, na interpretação incisiva dos bailarinos e na trilha sonora envolvente de flautas, nogni, bateria e percussão que os guiam. Uma coreografia tumultuada e nada complacente que questiona se os gestos e a música podem curar feridas. Tassembédo ao explicar a escolha do tema, finda: “Porque eu sou humana. Como eu poderia falar de outra coisa? Casamento? Batismo? O mundo está em colapso e eu estou explorando um tema universal, que para mim é isso ou nada”.
Apesar de ser um símbolo do estilo, Irene não gosta do título ‘dança contemporânea’. Para ela, a definição é um quadrado que limita o movimento. A coreógrafa também não gosta de descrever em quais pontos a dança tradicional permeia seu espetáculo. Para ela isso é uma mistura indecifrável: “Ninguém questiona isso para uma dança clássica: por que isso? Por que aquilo? Na minha dança é a mesma coisa. Eu não tenho explicação para cada movimento, eles são sentimentos, meus e dos dançarinos”. Com espetáculos curtos para não ter quebras de ritmo, seu estilo é marcado por movimentos rápidos, compasso forte e enérgico e música ao vivo com instrumentos tradicionais. “Mas, sobretudo, a ideia principal é de que o corpo é o movimento”, explica a artista, que acredita que o espetáculo nunca é gratuito: as emoções boas e ruins são sempre uma resposta positiva, pois significa que aconteceu uma reação, que a pessoa saiu dali e sentiu alguma coisa. Mesmo que tenha odiado, é um bom sinal, pois significa que a dança mexeu com ela e afetou sua calma interior.
Entre as características que marcam o estilo da coreógrafa estão a concepção e a formação da performance, assim como uma cuidadosa seleção de bailarinos. Irène explica que muda o espetáculo constantemente durante os ensaios e só chega à versão final na última semana. O mesmo vale para a música, que só é decidida nos últimos dias: “Os bailarinos precisam estar emocionados com a música, ela precisa ainda surpreendê-los, chocá-los para que a expressão seja verdadeira e para que não enjoem, para que a dança não fique automática”. A diretora ainda explica que não gosta de trabalhar com quem abaixa a cabeça e que para formar sua equipe escolhe dançarinos que tenham opinião, que se impõem e que querem discutir significados e razões de cada ato. Com os bailarinos, seu objetivo é trabalhar igualmente com todos, explorando o potencial único de cada um.
A igualdade no tratamento é percebida no último espetáculo, que conta com a participação de Solo Béton. Apenas 15 minutos depois de sua presença no palco, que o espectador começa a desconfiar que seus movimentos possuem um quê diferente. Béton é deficiente físico, mas é a sua marcante habilidade e acentuado talento que se destacam na apresentação. A admirável direção de Tassembédo, explorando o melhor de seu potencial, enfatiza a destreza do bailarino: “O espetáculo mostra que ele está ali porque é bom e não porque é handicap. Nos ensaios, se eu peço para ele correr, ele me questiona: como? Eu não quero que ele corra como os outros, eu quero que ele corra como ele. A dança é a expressão dele, e não dele tentando ser outro”, explica a coreógrafa ao enfatizar que na sua concepção de dança não existem diferenças. Solo Béton e o espetáculo ‘Manteau’ são provas disso.
A estreia de Manteau aconteceu no encerramento do Festival Internacional de Dança de Ouagadougou de 2014, com a presença da primeira-dama e outras figuras importantes do país, que admiram e respeitam o trabalho da artista, responsável pela criação e realização do festival. O FIDO, que está em sua segunda edição, reuniu mais de 30 companhias de dança da Europa, América, Ásia e África em oito noites de programação consecutiva. Além de contribuir para o desenvolvimento e distribuição internacional da arte da dança em toda a sua diversidade, dar um novo impulso na criação artística local, oferecer oportunidades para aprendizagem e intercâmbio de jovens bailarinos e produtores e cultivar a excelência da coreografia burkinabé, o festival é uma chance rica de viajar pelo mundo de criação e pelas ideias inovadoras da mente de Irene Tassembedo.
Site da Escola de Dança Internacional Irène Tassembédo (EDIT): http://www.edit-danse.org/
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