em Casamance
Arte: Natan Aquino
Mais do que em qualquer outro lugar, definir o teatro africano contemporâneo definitivamente não é uma tarefa fácil. A prática do que hoje é a concepção de teatro está presente no continente há mais de mil anos, no entanto, com outros nomes e outras cátedras. Na África, a arte de representar nasce junto às primeiras histórias narradas e crescem então abraçadas. As técnicas de narração se desenvolvem junto às de interpretação, afinal para passar uma mensagem e fazê-la perdurar por séculos é preciso além do dom, um belo treinamento de atuação.
Na origem, o teatro não é arte, é função social. Serve para transmitir conhecimento, para passar tradições para frente, para costurar a História, aquela com H maiúsculo, que na África se construiu na fala. O conceito do drama grego chega centenas de anos depois para incitar uma explosão química entre as duas formas, tornando-as inextricáveis. O mundo da tradição oral e toda sua carga cultural passam a permear o espaço do palco grego, recheando suas veias. As mensagens de antes acham novos meios e os conhecimentos ancestrais continuam a ser transmitidos, porém de uma nova plataforma.
Os recitais dos vilarejos acham espaço nas apresentações contemporâneas, abrindo caminho nas estradas do teatro moderno. O modo multidisciplinar de narrar histórias incide também sobre as peças que tornam música, dança e contos indissociáveis da arte africana. O roteiro vem sempre banhado de vitalidade, implícitos e explícitos de lições de vida e de ética e de conclusões morais. Nasce um teatro político e engajado, que sabe rir do desastre sem deixar de denunciá-lo.
De um paradoxo criado por um teatro que perdoa e não esquece, começam a se formar grandes escolas de pensamento do drama e apreciados intelectuais da área como Cont Mlhanga no Zimbábue, Sidiki Bakana na Costa do Marfim, Falaba Issa Traoré no Mali e Hubert Ogunde, considerado o pai do teatro moderno na Nigéria. Com eles, o teatro de sensibilização, teatro fórum, teatro da verdade, teatro para ação comunitária ganham força nas comunidades rurais e urbanas destacando os temas de preocupação e desenvolvimento social e formando uma espécie de arte funcional contemporânea. Um contexto que promove no continente o surgimento de grandes festivais de teatro, revelando e incitando o melhor do drama africano.
Nesse intuito, o festival Casamance em Scene – Festival Internacional da África do Oeste, realizado no Senegal, promete ser um destaque na área. Já na sua sexta edição, o evento não para de crescer, atraindo cada vez mais público e fortalecendo cada vez mais sua estrutura. Se antes contava com apenas alguns grupos do país sede, hoje abriga uma equipe internacional contando com a participação da maioria dos países do Oeste Africano. Talentos do Benim, Togo, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali e também europeus como França e Bélgica, entre outros já circulam pela programação oferecida pelo festival.
Criado em uma parceria da Companhia de Teatro Bou-Saana e da Aliança Franco-Senegalesa, o festival engorda em tamanho e em ambições, pretendendo se tornar um encontro de referência no cenário mundial unindo em Zinguinchor, capital da região de Casamance no sul do país, entusiastas e profissionais da área.
Um dos organizadores do festival, Paul Chevillard, explica que 2013 será um grande passo para o festival. “A programação nunca esteve tão forte, e este ano está marcada pela qualidade, criatividade, experimentação, trocas e universalidade das peças”. Chevillard conta que foi pensada para a sexta edição um forte programa de teatro de sensibilização, que segundo ele é uma importante linha artística do continente. Entre outros, ele também destaca que o teatro africano é um teatro que se interessa sempre pela realidade: “não estou falando necessariamente um teatro de característica realista, mas de um teatro do concreto, um teatro com capacidade de tratar o drama com uma face humor”.
A programação do festival, que acontece todo mês de dezembro, além da exibição de 11 peças inéditas no país, contou também com formações práticas e teóricas, workshops, uma exposição sobre as grandes figuras do cinema africano, diversas seções especiais de um teatro de sensibilização itinerante e colóquios que neste ano giraram entorno do tema “a função do artista na África”. Para começar e acabar, dois grandes eventos. As festividades foram abertas com um belo desfile, que coloriu a cidade com grupos de dança de Ziguinchor, grupos de palhaços, bonecos gigantes, mascarados de perna de pau atingindo lá seus três metros de altura e infinitas crianças que pulularam de cá e de lá, ora contagiadas pela energia da brincadeira, ora fugindo a milhão amedrontadas dos seres fantasiados.
Para finalizar o festival com o mesmo alento, uma novidade especial: o Grande Prêmio de Público. Dessa vez, foi cedida aos espectadores a decisão do melhor espetáculo. O vencedor veio do Mali, a última peça a ser apresentada: “Plus fort que mon père” (Mais forte que o meu pai), do diretor Jean-Louis Sagot-Duvauroux, que trazia o diálogo entre pai e filho, cada um contextualizado pela música de seu tempo. A peça se constrói no encontro e desencontro entre o balafon (instrumento musical tradicional do Mali) do pai e o rap do filho, que aos poucos vão encontrando harmonia. O confronto e o acordo musical entre passado e futuro conquistou o público, que escolheu a peça como a melhor do ano.
Para fortalecer as raízes que alimentam o evento, as instituições da cidade investem durante o restante do ano na capacitação local de profissionais da área. A Companhia de Teatro Bou-Saana, por exemplo, realiza oficinas de teatro de sensibilização, enquanto e a Aliança Franco-Senegalesa oferece cursos de técnicas teatrais de direção e performance. Para engrossar o caldo, em 2014, será inaugurada por ambas uma casa dos artistas, para residências culturais de longo prazo, onde será possível acolher criadores, pensadores e realizadores, incentivando ainda mais o desenvolvimento da arte cênica na região. Casamance em scene promete para o futuro!