Falésias de Bandiagara
Arte: Natan Aquino
As falésias de Bandiagara carregam em seu ventre um pedaço de paraíso. O cenário contrasta o marrom avermelhado das rochas, o verde incisivo de árvores esparsas e das plantações familiares e o azul forte do céu sempre aberto. Ali, encaixados no cenário cru, espalham-se dezenas de vilarejos que dividem harmoniosamente o espaço com a natureza formando o País Dogon. Lembrando a origem do mundo, a região parece ter a resposta do equilíbrio entre homem e natureza que o futuro pede. Nos 150 quilômetros de falésia, antigas habitações encrustadas nas rochas, como cidades camaleões, se escondem na paisagem e dão um toque mágico à região.
Fugindo do processo de islamização na região sudoeste do Mali, os Dogon chegaram à região de Bandiagara no século XV, que antes era ocupada pelos ‘tellem’, responsáveis pelas construções das primeiras cavernas e casas incrustadas nas paredes da falésia. Dominando a região, se posicionaram estrategicamente nas escarpas, construindo um refúgio natural contra possíveis invasores. Entrincheirados nas rochas e pendurados entre pedras, com vilas de difícil acesso no ambiente hostil, a população se protegeu por meio da arquitetura. O saldo, além da vitória contra as pressões históricas, foi a preservação de culturas e tradições seculares, que hoje tornam o povo Dogon uma das mais complexas e originais sociedades do mundo.
Com o fim do perigo de invasão e em razão de mudanças climáticas, no último século, a população começou a abandonar as habitações mais altas, ao longo das paredes da escarpa, instalando-se às bordas das montanhas e delineando os novos vilarejos. O resultado é uma paisagem excepcional onde passado e presente formam um coesivo encontro entre as duas disposições. Hoje, entre as três regiões que formam o País Dogon, planalto arenito, escarpa e planícies, existem 289 aldeias espalhadas, que abrigam aproximadamente 500 mil habitantes. As realizações arquitetônicas de cada vilarejo compõem estruturas únicas de casas, celeiros, altares e santuários, formando uma importante paisagem cultural, que reflete a engenhosidade e a filosofia da população local.
O povo Dogon carrega uma relação estreita com o meio ambiente, que é expressa em seus rituais e tradições sagrados, considerados pela Unesco entre os mais bem preservados da África subsaariana. Apesar do cristianismo e islamismo terem se espalhado pela região ao longo do último século, os valores ancestrais e a integração harmoniosa de elementos culturais permanecem autênticos e únicos. A população mantém uma série de tradições sociais como festivais, cerimônias e o culto dos antepassados. Entre os mais impressionantes patrimônios imateriais, está a Dança das Máscaras, um rito com alto grau de codificação, que para os Dogon experimenta em sua concretização a formação do mundo, a organização do sistema solar, o culto às divindades e os mistérios da morte.
A coreografia e a música que seguem a Dança das Máscaras são atribuídas a uma sociedade chamada Awa, palavra que pertence à linguagem secreta dos Dogon. Executada por um conjunto de mais de 20 dançarinos mascarados vestidos de roupas de fibras amarelas e vermelhas, a dança é também acompanhada pelos líderes tradicionais, líderes religiosos e pelos membros da sociedade de caçadores. Com mascarados em perna de pau, máscaras gêmeas e máscaras escadas, que chegam até seis metros de altura, a coreografia exige grande técnica dos bailarinos, cada um com vocabulário coreográfico específico conforme sua máscara. Os integrantes são todos homens, uma vez que apenas pessoas do sexo masculino e já iniciadas têm permissão para participar do ritual, apesar de que muitas máscaras homenageiam figuras femininas, evocando a importância da mulher na sociedade. Um por um, os membros da sociedade Awa vão entrando no palco, situado em um platô considerado sagrado. Aparecem usando máscaras de madeira pintadas em cores brilhantes, capuzes de tecido e roupas decoradas detalhadamente com búzios e palha. Cada máscara possui um significado que serve para conectar o mundo do Sol e da Terra, onde a vida e a morte se encontram.
A dança é recheada de mistérios cognitivos que representam os mitos e o pensamento simbólico local sobre o universo, que através da coreografia tece uma história paralela à tradição oral, transmitindo a cada geração os valores culturais da sociedade. Entre as estimas de mais importância está a cosmogonia Dogon, que abrange uma história complexa de lendas e crenças sobre as origens do universo e seus principais fenômenos. Com alto grau de conhecimento sobre astrologia, os Dogon acreditam que toda a criação está vinculada às estrelas. Antropólogos e sociólogos que estudaram a cultura revelam que a sociedade possui noções detalhadas sobre os quatro satélites de Júpiter, o satélite de Vênus, os anéis de Saturno e a o sistema binário da estrela Sirius. Alguns antropólogos e sociólogos como Germaine Dieterlen e Marcel Griaule, que viveram anos na região, acreditam também que o povo Dogon possui há séculos conhecimentos que a comunidade científica ocidental descobriu apenas recentemente.
O País Dogon, com seus mistérios e cenário deslumbrante é como um templo de um rico e complexo universo cultural. Uma região onde carros não existem, onde a natureza está intacta e onde o ciclo de vida é orgânico. Tombado como patrimônio mundial da Unesco, a falésia de Bandiagara e seus disfarçados vilarejos atraem turistas de todo o mundo em busca de uma experiência cultural única. A visita que pode demorar de 2 a 7 dias leva o visitante por caminhos virgens, passando por aldeias camufladas nas montanhas ou espalhadas nas planícies que rodeiam as escarpas. No caminho, entre as rochas, brotam jardins de cebola e alface, plantações familiares de milho, milhete e algodão. O contato com a população enriquece a estadia e poder dividir pequenos momentos do cotidiano Dogon transforma o viajante. Quilômetros de caminhada diária que abrem as portas para um mundo onde homem e natureza são intrínsecos e complementares.
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